Por Robinson Cavalcanti
(capítulo do livro “A utopia possível”)
“Não lhe disse para não acreditar em tudo que vê e ouve?
Não se deve ter uma visão simplista da realidade, nem
Tampouco tornar-se anônimo: conselhos a Luis Crente.”
Luis Crente trabalha em uma fábrica por um salário mínimo, em condições insalubres, ultrapassando sua jornada legal. Passa três horas por dia dentro de “confortáveis” trens do subúrbio. Sustenta mulher e três filhos (com aquele tipo de educação e assistência médica: uma verdadeira cruz não dourada), residindo em um “arejado” barraco, usufruindo sempre de frugalíssimo cardápio.
Enquanto isso os patrões e os gerentes de sua firma moram em mansões, possuindo casas-de-campo e casas-de-praia. Passam as férias na Europa e são assessorados domesticamente por numerosa criadagem, com mesa sempre farta e rebentos bem cuidados.
Deve Luis Crente achar isso tudo natural, a pura vontade de Deus?
Luis Crente é membro de uma igreja evangélica, dizimista e casto. Ele ouve pregações sobre resignação e que o homem que é honesto e trabalhador prospera (exatamente o que ele faz, mas os que prosperam parecem fazer o contrário).
O seu sindicato entra em greve por melhores salários e melhores condições de trabalho. E agora Luis?
Luis como bom crente vai para o culto no dia da assembléia do sindicato, fica em casa orando na hora da passeata, e por fim, heroicamente, é o único em sua seção que fura a greve, trabalhando solitário enquanto assovia um conhecido corinho.
Terminada a greve – com sensível reajuste salarial – Luis promove um culto em Ação de Graça, e dá o dízimo da diferença.
Pode-se imaginar o “testemunho” de Luis para o seus “mundanos” colegas de fábrica...
Se Luis Crente vivesse em 1822 ele seria contra nossa independência do reino de Portugal (por desobediência ao Rei)? Se ele vivesse em 1888 seria contra a abolição da escravatura (por subversão a ordem natural)? Se ele vivesse em 1930 apoiaria Washington Luis e se vivesse em 1945 apoiaria a permanência de Getúlio? Imagine a História do Brasil se todos os cidadãos, em todas as épocas fossem como Luis. Estaríamos ainda nas Capitanias Hereditárias.
Luis vive em uma realidade eclesiástica marcada pelo pessimismo, pela falta de esperança no Deus da História (fé em um Deus fora da História), pelo misticismo, pelo além-tumulismo, pelo almismo. O recado que recebe vai mais ou menos por aí:
Aceite a Jesus, seja legalista no individual, trabalhe muito, não se meta em nada e espere a benção da saúde e da riqueza (não a riqueza das bênçãos). Se isso não funcionar é devido à “problemas espirituais” (que ocorrem mais no Piauí do que na Califórnia). De qualquer modo a recompensa celestial é uma certeza. Deus vai “pescando” individualmente os convertidos e os abençoando. Se todos se converterem, todos serão abençoados e não mais haverão pobres na terra.
Seu professor de escola dominical ensinou um dia desses que os governantes, de qualquer regime, são ministros de Deus, que sabem melhor do que o povo do que o povo precisa (especialmente um povo preguiçoso, cachaceiro e idólatra como o nosso), e que é gravíssimo pecado crítica-los, questioná-los ou desafiá-los.
Luis Crente me escreve pedindo uma orientação. Que conselhos poderíamos lhe dar?
Irmão Luis:
Você é um cidadão do Estado. A greve é uma instituição legal. Entrar em greve não é desobediência, mas obediência à Lei.
Você, irmão, é responsável pelo bem estar do seu corpo, templo do Espírito Santo, e pelo bem estar de sua família. Deixar que lhe destruam aos poucos é um grave pecado.
Você é chamado para ser um cristão solidário. Encarne o amor de Cristo junto com os seus colegas, em suas dores, suas esperanças e suas lutas.
Você como militante sindical que deve ser por valorizar a greve, deve argumentar que ela é um recurso extremo, esgotados ante outros meios de luta. Você também deverá ser contra o emprego da violência (de seus colegas, de seus patrões e seus assessores de segurança e da policia), e contra os atentados às instalações da empresa. Mas você só terá autoridade moral para lutar por essas coisas se você estiver no meio da luta, não na arquibancada. Se a sua consciência diz que você não deve entrar em determinada greve, não entre. Se aquela greve for vitoriosa, a sua querida consciência o levará a não receber as vantagens dela decorrentes.
Agora vou enumerar algumas questões preliminares que Luis deve encaminhar aos oficiais de sua igreja e discutir em sua classe de Escola Dominical.
1. As formas de organização social são estáticas ou dinâmicas? Elas podem ser mudadas ou não? Em que direção? Por quais métodos?
2. As desigualdades sociais são naturais ou antinaturais? É resultado de limitações congênitas (deficiência físicas ou psíquicas) ou de pecados individuais (preguiça, vício) ou inclui algo mais, como a perversidade com que essas formas de organização são erigidas (pecados sociais)?
3. A História é fatalista e as relações sociais obras do acaso ou isso pode receber uma explicação científica (econômica, sociológica, política, etc.) que demonstre causas, efeitos, racionalidade, alternativas, etc?
4. Deus tem alguma coisa haver com o mundo que ele criou, com a História que ele preside e com os povos sobre os quais é soberano ou não? O que é que Deus quer para sua Criação?
5. O demônio tem haver com essas coisas também? Qual é o projeto histórico da turma infernal?
6. Os valores do Reino de Deus (justiça, honestidade, etc.) servem para agora? Como vivenciá-los não platonicamente, no cotidiano?
7. O amplo conteúdo bíblico pode (e deve) ser resumido na “salvação da alma agora e glória após a morte depois”? Somos sinceros em dizer que a “Bíblia tem a resposta”, sem adequá-la às perguntas de nosso tempo?
8. O que os cristãos entendem por cidadania terrena? Qual o conteúdo e a prática dessa cidadania? Para que servimos enquanto estamos ainda vivos?
Luis, querido irmão, compreendo os seus temores do “festival de greves” de que lhe falava seu pai operário no inicio dos anos 60 e dos “tempos sem greves” de que lhe falava seu irmão mais velho, operário dos anos 70, e que andou provando do “serviço de bordo” dos órgãos de repressão. Vamos construir a democracia nos anos 80 Luis, tenha fé.
Você ouviu falar em “infiltração comunista” na igreja e anda meio desconfiado. É para desconfiar mesmo. Porque com o que lhe andam ensinando eu estou suspeitando de que alguns líderes da sua igreja recebem o ouro de Moscou, pois estão fazendo uma força danada para dar razão a Marx, no sentido de transformar a religião em ópio do povo...reaja contra esses vermelhos, irmão, ore por eles. A paz do Senhor!
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