Por Jonh Stott
O preço da missão
Um dos aspectos mais negligenciados da missão bíblica hoje é o lugar que têm nela, indispensavelmente, o sofrimento e até mesmo a morte. No entanto, a Escritura deixa isto muito claro. Vou citar três exemplos.
Primeiro, nós o vemos claramente no servo sofredor de Isaías. Antes que ele possa tornar-se uma luz para as nações e trazer salvação para os confins da terra,[1] o servo oferece as costas aos que o ferem, a face aos que lhe arrancam os cabelos e o rosto aos que o afrontam e cospem nele.[2] Antes de "causar admiração às nações",[3] ele é "desprezado, e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores, e que sabe o que é padecer".[4] Mais do que isso, ele carrega os nossos pecados e morre por nós como oferta pelo pecado.[5] Douglas Webster enfatiza isto de maneira apropriada, quando diz que
Mais cedo ou mais tarde, a missão leva à paixão. Em categorias bíblicas... o servo deve sofrer...; é isso que torna efetiva a missão... Toda modalidade de missão conduz a algum tipo de cruz. A própria forma da missão é cruciforme. Nós só podemos entender a missão em termos da Cruz....[6]
Em segundo lugar, o próprio Senhor Jesus ensinou e demonstrou este princípio, estendendo-o aos seus seguidores. Quando alguns gregos desejaram vê-lo, ele disse: "É chegada a hora de ser glorificado (sc. na cruz) o Filho do homem. Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, produz muito fruto."[7] Em outras palavras, só através de sua morte o evangelho iria se estender para o mundo gentílico. Assim, a morte é mais do que um caminho para a vida; ela é a condição para se frutificar. Se a semente não morrer, fica sozinha. Mas, se ela morrer, se multiplica. Foi assim com o Messias; e o mesmo se dá com a comunidade messiânica. Afinal, "se alguém me serve, siga-me",[8] disse Jesus.
Em terceiro lugar, o apóstolo Paulo aplicou a si mesmo este mesmo princípio. Consideremos estes surpreendentes textos:
Portanto vos peço que não desfaleçais nas minhas tribulações por vós, pois nisso está a vossa glória.[9]
Por esta razão, tudo suporto por causa dos eleitos, para que também eles obtenham a salvação que está em Cristo Jesus com eterna glória.[10]
De modo que em nós opera a morte; mas em vós, a vida.[11]
Estes três versículos contêm certas declarações realmente impressionantes. Paulo tem a ousadia de dizer que através de seus sofrimentos outras pessoas entrarão na glória, que através da sua perseverança outros serão salvos e que através da sua morte outros irão viver. Será que o apóstolo perdeu o juízo?! Não! Será isso mesmo que ele queria dizer? Sim! Naturalmente, não é que ele atribua nenhuma eficácia expiatória aos seus próprios sofrimentos e morte, como o faz em relação aos sofrimentos e à morte de Jesus Cristo. Pelo contrário. As pessoas só podem receber a salvação, a vida e a glória quando o evangelho é pregado a elas, e aqueles que pregam o evangelho com fidelidade invariavelmente sofrem por isso. Paulo sabia de que estava falando. A razão pela qual se tornara um prisioneiro e estava algemado é que ele havia sido fiel à "visão celestial" de que os gentios seriam recebidos na comunidade cristã exatamente nos mesmos termos que os judeus. Foi este aspecto do evangelho que levantou contra ele uma oposição quase fanática. E os gentios deviam a sua salvação à disposição de Paulo de sofrer por proclamar essas boas novas.
Desde a época de Paulo, deve ter havido muitos exemplos de sofrimento. Não é por acaso que a palavra grega para "testemunho" é martys. As páginas da história da Igreja estão repletas de histórias de perseguição. Esta, algumas vezes, tem sido física. Em 1880, pouco depois que o Exército da Salvação foi fundado na Inglaterra,
"publicanos e donos de bordéis desencadearam um selvagem contra-ataque... o Exército descobriu a triste verdade do provérbio espanhol: 'Quem quiser ser cristão tem que esperar a crucificação"... Em um ano (1882), 669 oficiais do Exército de Salvação foram espancados ou brutalmente assaltados." Durante a década de 1880, os salvacionistas, ao dedicarem os seus filhos, confessavam que estavam prontos para vê-los sendo "desprezados, odiados, amaldiçoados, espancados, chutados, aprisionados ou mortos por amor a Cristo".[12] Em outras ocasiões o sofrimento foi mais mental do que físico. Em 1883, por exemplo, "a Marechala", como sempre foi conhecida a filha mais velha do General Booth, escreveu, em sua cela na prisão de Neuchâtel, na Suíça, um artigo para o War Cry, em que ela refletia sobre a crucificação interior.
Jesus foi crucificado... Desde aquele dia, os homens vêm tentando encontrar uma maneira mais fácil, mas os caminhos mais fáceis fracassam. Se você quer ganhar milhares que estão sem Deus, precisa estar pronto para ser crucificado: seus planos, seus ideais, seus gostos e suas inclinações. Mas as coisas mudaram, diria você; agora há liberdade. Será? Vá e viva a vida de Cristo, fale como ele falou, ensine o que ele ensinou, denuncie o pecado onde quer que o encontre, e veja se o inimigo não se voltará contra você com toda a fúria do inferno... Cristo não foi crucificado na sala de visitas. O que aconteceu com ele não foi nada fácil... Você tem medo de ser espancado, caluniado ou difamado? Então chegou a hora de ser crucificado...[13]
Mas há ainda um terceiro tipo de sofrimento, que é o social. Certa vez, Vincent Donovan, um sacerdote católico americano que trabalhou por dezessete anos entre os Masai, na Tanzânia, perguntou a si mesmo qual seria a marca distintiva de um missionário. Eis a resposta que ele encontrou:
O missionário é essencialmente um mártir social, arrancado de suas raízes, de sua gente, seu sangue, sua terra, seu contexto, sua cultura... Ele tem que ser desnudado até o máximo que um ser humano pode ser, até as próprias entranhas do seu ser... (ele precisa) despir-se de sua própria cultura, a fim de poder ser um instrumento nu e cru do evangelho para as culturas do mundo.[14]
Mas este apelo para o sofrimento e a morte, como condição para uma missão frutífera, soa muito estranho aos nossos modernos ouvidos ocidentais. A respeitável "escravidão de classe média" da igreja não é exatamente uma arena para perseguição. Onde está, hoje, a disposição para sofrer por Cristo? Na tendência evangélica para o triunfalismo parece haver pouco espaço para a tribulação. E o falso "evangelho da prosperidade", com suas promessas de saúde e riqueza ilimitadas, cega as pessoas para as exortações bíblicas quanto à adversidade.
Mas permanece o fato de que, se fôssemos mais firmes e mais fiéis, certamente sofreríamos mais.
Há três razões principais para a oposição; elas se encontram na esfera da doutrina, da ética e da disciplina. Quanto à doutrina, o evangelho de Cristo continua sendo loucura para os intelectualmente orgulhosos e uma pedra de tropeço para quem se arroga justiça própria; ambos os grupos o consideram humilhante. Quanto à ética, o apelo de Cristo é para a autonegação e o domínio próprio; os autoindulgentes acham inaceitável o seu desafio. Quanto a disciplina, tanto o batismo como a Ceia do Senhor pressupõem arrependimento e fé por parte daqueles que desejam recebê-los; negar estes sacramentos evangélicos a alguém, mesmo a quem admite abertamente que não se arrepende nem crê, é, mesmo assim, considerado por estes um grande ultraje. Assim, quem quer que procure ser fiel na doutrina, na ética e na disciplina certamente haverá de despertar perseguição, tanto na igreja como no mundo.
Estamos, portanto, prontos para suportar o sofrimento de ser ridicularizados, a solidão de ser relegados ao ostracismo, a dor de ser caluniados e difamados? Estamos realmente dispostos, se necessário, a morrer com Cristo para a popularidade e a promoção, para o conforto e o sucesso, para o nosso entranhado senso de superioridade pessoal e cultural, para a nossa egoísta ambição de ser ricos, famosos e poderosos?
É a semente que morre e se multiplica.
Um irmão de Orissa, Índia, contou-me certa vez que, quando ele tinha oito anos de idade, seu pai, que era evangelista, havia sido martirizado, morto por assassinos de aluguel. Na ocasião da morte do seu pai, contou, havia apenas doze igrejas naquela região; quando ele falou comigo havia cento e cinquenta.
[1] Is 49.6; cf. 42.1-4
[2] Is 50.6-7
[3] Is 52.15
[4] Is 53.3
[5] Is 53.4-12
[6] Douglas Webster, Yes to Mission (SCM, 1966), pp. 101-102.
[7] Jo 12.23-24
[8] Jo 12.26
[9] Ef 3.13
[10] 2 Tm 2.10
[11] 2 Co 4.12
[12] Richard Collier, The General Next to God (Collins, 1965), pp. 104-109
[13] Carolyn Scott, The Heavenly Witch: The Story ofthe Maréchale (Hamish Hamilton, 1981), p. 113.
[14] Vincent Donovan, Christianity Rediscovered: An Epistle from the Masai (1978; SCM, 1982), pp. 193-194.
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