Jung Mo Sung
Complementando o artigo anterior (Cristianismo de libertação XI: os dez mandamentos e os pobres), eu quero propor aqui uma breve reflexão sobre um dos textos bíblicos (At 4, 32-35) que mais inspiram as pessoas que, em nome da fé cristã, lutam por uma sociedade mais justa e solidária,:
"A multidão dos que haviam crido era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum.Com grande poder os apóstolos davam o testemunho da ressurreição do Senhor, e todos tinham grande aceitação.Não havia entre eles necessitado algum. De fato, os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores da venda (v. 34) e os punham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um segundo sua necessidade."
É um texto fascinante, rico e complexo. Duas perguntas surgem de imediato: a) o que faz uma multidão de pessoas se tornarem um só coração, uma comunidade tão unidade a tal ponto de chegarem a ter tudo em comum?; b) por que Lucas "mistura" em um único texto dois assuntos aparentemente tão distintos, o testemunho da ressurreição (uma questão religiosa) e a nova forma de organização econômica?
O coração do texto e da própria comunidade é a fé na ressurreição de Jesus. A multidão mudou a sua maneira de ver o mundo e de viver porque creu na ressurreição daquele que morreu na cruz por pregar a boa-nova aos pobres. Sem a fé na ressurreição, não haveria sentido e nem força espiritual para vencer o egoísmo e o desejo de acumulação pessoal e viver a vida da comunidade, partilhando para que todos pudessem ter uma vida digna, sem passar necessidades. Ao mesmo tempo, sem esta encarnação em um modelo alternativo de vida (incluindo as questões econômicas), não é possível viver a fé na ressurreição. É por isso que Lucas coloca a narrativa do testemunho da ressurreição "abraçada" por duas narrativas paralelas que falam de como a multidão se transformou em comunidade, vive os ideais de Jesus tendo tudo em comum.
Como a tradição da "esquerda" moderna sempre enfatizou a noção de igualdade social, é importante frisar que no texto do livro dos Atos dos Apóstolos o objetivo não é a igualdade, mas sim que não houvesse necessitados entre eles. Porque para eles o mais importante era que todos tivessem uma vida digna, mais do que a igualdade. Também porque podemos pensar em uma situação de igualdade social onde todos passam necessidades.
Quando lemos este texto isoladamente, corremos um sério risco de pensarmos que este modelo social foi vivido plenamente, sem grandes problemas. É a eterna tentação de crermos que existem soluções ou modelos sociais alternativos "perfeitos", sem problemas. Mas este não foi o caso da comunidade de Jerusalém, como não é nenhum dos casos. Logo após a descrição do ideal da comunidade, Lucas nos fala da generosidade de Barnabé e também da tentativa de fraude de Ananias e Safira (At 5,1-11). Ele não quer nos deixar na ilusão e quer mostrar como as pessoas reais das comunidades concretas são ambíguas.
Além deste problema no âmbito pessoal-espiritual, Lucas narra que o aumento do número dos discípulos criou um outro problema (At 6,1-6). Quando a comunidade é pequena, todas as pessoas se conhecem e as coisas se ajeitam mais facilmente. Mas, quando ela se torna numerosa, é preciso criar mecanismos de operacionalização dos ideais e dos valores que nem sempre funcionam bem. Os cristãos de origem helênica estavam reclamando porque as suas viúvas recebiam as distribuições diárias só depois das hebréias. Provavelmente porque os "distribuidores" eram hebreus. A solução foi a de eleger também alguns helênicos para esta tarefa. Sucesso na pregação e o aumento da comunidade criam novos problemas que exigem adequações no campo administrativo-operacional.
Depois dos problemas na esfera pessoal e na administrativa, veio a crise estrutural: quando a distribuição é maior do que a entrada ou a produção de recursos, chega uma hora em que os bens acabam e a fome se generaliza na comunidade de Jerusalém. Sem produção suficiente, não se pode consumir ou distribuir. O espírito de comunidade nascido da fé em Jesus Cristo levou comunidades cristãs de outras regiões fazerem doações para minorar esta fome.
Mais um detalhe fundamental nesta experiência comunitária: o modelo de vender os bens e partilhar o dinheiro na comunidade só foi possível porque havia um mercado funcionando onde pudesse vender as casas e comprar comida e outros bens necessários na vida diária. A partilha na comunidade era um contraponto profético contra a lógica do Império.
Apesar destes problemas e limites no campo pessoal, administrativo e econômico-estrutural, a comunidade de Jerusalém continua sendo um exemplo para nós de como devemos sempre buscar encarnar, em modelos econômico-sociais alternativos ao opressivo dominante, a nossa fé na ressurreição e os valores ensinados por Jesus.
Hoje somos chamados a assumir este desafio de propor e testemunhar modos alternativos de vida e de organização social. Modos estes que precisam ser continuamente criticados e melhorados em nome da boa-nova de libertação aos pobres e oprimidos/as. Sem isso, o testemunho da fé na ressurreição torna algo vazio, um coração sem um corpo para animar, para vivificar.
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