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sábado, 26 de setembro de 2009

Livrai-nos do (capitalismo) do mal

Robinson Cavalcanti


Escravismo “inevitável”Durante milênios a humanidade, na organização da sua economia, conheceu um perverso modo de produção — o escravismo: na antigüidade, pelo aprisionamento dos povos conquistados; na modernidade, pelo uso extensivo e sistemático da mão-de-obra de indígenas subjugados e, principalmente, das populações negras, forçosa e violentamente deslocadas de sua terra, seu povo e sua cultura, na África. O Brasil foi um dos primeiros países a implantar e um dos últimos a abolir esse sistema iníquo, em que os escravos não eram tidos como pessoas, mas como “coisas”, de propriedade dos seus senhores. A exploração, a violência física e sexual, e a opressão fizeram do escravismo uma longa e trágica face da humanidade caída, uma evidente e inquestionável demonstração do pecado individual, social e estrutural.A cristandade, no geral, foi conivente com o escravismo, justificando-o, legitimando-o. Se, na história, cristãos foram escravos, mais ainda o foram senhores de escravos. Teólogos chegaram a duvidar se os negros tinham alma ou não (como o haviam feito anteriormente a respeito das mulheres). Com a libertação dos escravos, o pecado social seguinte foi o racismo e a segregação, marcadamente em regiões ditas “cristãs”, como o sul dos Estados Unidos da América e a África do Sul. Por outro lado, cristãos denunciaram o pecado do escravismo, como Bartolomé de Las Casas, no Império Espanhol dos reis muy católicos, e William Wilbeforce, o corajoso parlamentar que dedicou toda a sua vida à luta contra o tráfico negreiro e a escravidão no Império Britânico very protestant.Em nosso país, registra-se positivamente os estatutos de nossa primeira igreja evangélica formada por nacionais (a Igreja Evangélica Fluminense), que exigia dos senhores de escravos convertidos a libertação dos seus escravos como pré-condição para o batismo, a profissão de fé e o status de membros em plena comunhão.Durante o longo período do modo de produção escravista, o Estado, a classe dominante e os intelectuais o justificavam como “da natureza das coisas”, “inevitável”, “necessário”, e diziam que “nenhum outro modo seria possível” e que qualquer tentativa de modificá-lo ou extingui-lo seria tida como agitação ou crime devido aos males que acarretaria.Servidão “natural”Durante séculos a humanidade, na organização da sua economia, conheceu um outro perverso modo de produção: a servidão, também conhecida como modo de produção feudal. Tinha como epicentro o continente europeu, os seus feudos, o seu rígido sistema estamental, com a sua nobreza e os seus servos, presos territorialmente à terra (gleba) e presos socialmente aos seus estamentos (extrato social aliado à categoria de produção), que marcavam, sem saída ou esperança, suas vidas e as de seus descendentes por gerações. Os servos não eram tidos como “coisas” (como no escravismo), mas como “seres inferiores” e “súditos”, igualmente explorados e violentados, como instrumentos para a acumulação de bens e capitais pela classe dominante dos feudos e reinos “cristãos”, integrantes do “Sacro Império”.A cristandade, no geral, foi conivente também com a servidão, justificando-a e legitimando-a como uma das suas próprias características, no seu apogeu.Durante o longo período do modo de produção feudal, da servidão, o Estado, a classe dominante e os intelectuais o justificavam como “da natureza das coisas”, “inevitável”, “necessário”, e alegavam que “nenhum outro modo seria possível” e que qualquer tentativa de modificá-lo ou extingui-lo seria tida como agitação ou crime devido aos males que causaria.Na verdade, temos aqui mais uma manifestação individual, social e estrutural do pecado, trágica face da humanidade caída, com a exploração da pessoa humana por seus semelhantes. Capitalismo “imprescindível”Nos últimos séculos a humanidade, na organização da sua economia, conheceu outro perverso modo de produção: o capitalismo. A nobreza foi substituída pela burguesia como classe dominante, tendo os dominados não mais como “coisas” ou “seres inferiores”, mas como mercadoria, apesar do status jurídico formal de “cidadãos”. Transmutou-se em várias fases: mercantil-imperial; industrial-colonial; serviços-neocolonial e o atual estágio de “globalização assimétrica”, monopolista ou oligopolista, além da exploração, da exclusão de continentes, países e fatias das populações nacionais. O poder, a propriedade e o saber são cada vez mais concentrados.As alternativas fascista e nazista se deram dentro do marco do capitalismo, e a ditadura (sobre o) do proletariado apresentava uma retórica socialista e um capitalismo de Estado. Com a derrocada do Império Soviético, ruíram as meta-narrativas e as utopias globais, impondo-se a “idéia única e possível” pelo Estado, pela classe dominante, pelos intelectuais e pela mídia: o neoliberalismo. Anacronismo, utopismo ou delinqüência, pois “nenhum outro sistema é possível ou desejável”.A alienação, a racionalização ou a teologia da prosperidade têm levado a cristandade à conivência ou à legitimação dessa nova expressão individual, social e estrutural do pecado, dessa nova face cruel da humanidade decaída.Na Reforma Protestante do século 16 temos uma face aristocrático-nacionalista, com o luteranismo e o anglicanismo, uma face burguesa-capitalista, com o calvinismo (hegemônica durante séculos), e uma face popular-socialista, com movimentos como os anabatistas, os niveladores e os cavadores, fonte do socialismo religioso e do socialismo cristão, contemporâneos.Amor, justiça, solidariedade, dignidade, igualdade, comunhão são valores centrais do reino de Deus na história, que se chocam com a intrínseca lei da selva, darwinismo social, do capitalismo (tentativamente “humanizado” e retoricamente “retocado”).Deus não criou o emprego, mas o trabalho, e nos manda ganhar o nosso sustento com o nosso próprio suor, e não com o suor do próximo, em um modo de produção em que todos, e cada um, seja senhor do seu corpo, do seu tempo, do seu talento e dos seus meios ou instrumentos.Há inconformação no coração e na mente dos fiéis, que aspiram, criam, denunciam e propõem. A humanidade (particularmente os cristãos) não perdeu a capacidade de criar o novo e o melhor. “Livrai-nos do mal”; “Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” e “Venha o teu reino” são palavras da Palavra neste tempo sombrio, aprisionado e aprisionador.Que o Espírito Santo reacenda na igreja a chama da esperança, mesmo diante da lamentável decepção política por que passa a nação brasileira.Como o escravismo e a servidão, um dia o capitalismo também será apenas um registro triste do passado! E os cristãos conscientes participarão da construção do futuro!

Dom Robinson Cavalcanti é bispo da Diocese Anglicana do Recife

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