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sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Pecado estrutural


Pecado estrutural e as boas intenções

Por Jung Mo Sung

Uma das grandes novidades teóricas da Teologia da Libertação (TL) foi o conceito de "pecado estrutural". De início, falava-se na "dimensão social do pecado" para mostrar que todo pecado - ainda visto como algo pessoal - tinha implicações e impactos na sociedade na medida em que as pessoas são também seres sociais - vivem na sociedade - e suas ações afetam a vida social. Depois o conceito evolui para "pecado social" para mostrar que há situações sociais que são de pecado e também para indicar que há pecados que são cometidos pela própria sociedade ou por grupos sociais, e não apenas por indivíduos. Paralelamente ao uso da noção de pecado social, surgiu a de "pecado estrutural" revelando que há estruturas sociais, econômicas, políticas ou culturais que são pecaminosas - produzem sofrimentos, opressões, o mal - pelo próprio funcionamento da sua lógica, quase que independente das intenções das pessoas envolvidas nestas estruturas.
Deixe-me dar um exemplo para melhor compreendermos a idéia do pecado estrutural. Em uma sociedade escravista, por melhor cristão que seja o fazendeiro senhor de escravo, e por melhor que ele trate os seus escravos seguindo os bons conselhos de um bom padre ou de pastor, a relação de escravidão é má, pecaminosa. Mas, o pior é que, em uma economia escravista, este fazendeiro cristão não pode prescindir de escravos. Pois sem escravos não há produção, na medida em que não há trabalhadores assalariados neste sistema social. O caráter pecaminoso desta estrutura econômico-social independe da boa ou má intenção ou do grau de honestidade das pessoas. É claro que faz alguma diferença na vida concreta de um escravo se o seu dono é uma pessoa violenta ou não, mas a situação fundamental não muda.
Este conceito foi uma grande novidade porque tradicionalmente - desde os tempos antigos até o surgimento das teorias sociais modernas - acreditava-se que a forma como a natureza e a sociedade funcionam vinha diretamente da vontade divina, de forças sobre-naturais ou da própria natureza. Sendo assim, ninguém questionava a ordem natural das coisas e todos viam a ordem social também como uma forma de ordem natural. Por isso, diante do mal, toda atenção recaía sobre a intenção ou a santidade ou a moralidade das pessoas envolvidas.
Neste tipo de teoria moral e social centrada na intencionalidade subjetiva, o único caminho para construir uma boa sociedade é educar ou converter todas as pessoas para que aceitando o seu lugar e a sua missão dentro da ordem natural das coisas ou da vontade divina agissem de modo correto e adequado. No fundo é a idéia de que se mudarmos o coração e a mente de todas as pessoas, o mundo será bom e justo.
A TL questionou esta visão de mundo e da sociedade e, com a noção de pecado estrutural, mostrou que além das mudanças pessoais é preciso mudar também as estruturas econômicas, políticas e culturais da sociedade e a forma de organizar e funcionar das principais instituições. Por isso é que na década de 1970 e 80 se falava bastante em "revolução" (não necessariamente algo violento) para mostrar a necessidade de transformações estruturais profundas.
Eu estou retomando este tema aqui porque tenho a sensação de que este conceito de pecado estrutural está meio desaparecido entre setores da TL e do cristianismo de libertação.
Alguns exemplos para justificar esta minha impressão. Por ocasião dos escândalos de corrupção que atingiram o governo Lula e a diversos dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT), a maioria das críticas ao PT e ao governo Lula feita pelos setores da "esquerda cristã" foi centrada na noção de ética pessoal. Criticou-se muito a falta de "ética" e do compromisso com o povo por parte destas pessoas, como se a estrutura de funcionamento e de organização do PT, da administração federal e da política nacional não tivesse nenhum peso importante no processo.
Diante de tantos problemas sociais e ambientais que afetam o nosso povo, muito do que se escreve se concentra em criticar a má intenção ou a falta de boa vontade política dos dirigentes políticos e da elite do país; ou então, apelar para a boa vontade das pessoas, chamado-as para a indignação através de denúncias e mais denúncias (muitas vezes sem análise das causas e das alternativas possíveis), seguidos de apelos "morais". Em alguns casos, uma imaginação poético-romântica sobre o futuro ocupa o lugar de projetos de sistemas econômico-sócio-políticos e, assim, não fornecem quase nenhuma pista sobre como será a nova estrutura social e como podemos construí-las.
A noção de pecado estrutural indica que, na dinâmica social, as boas ou más intenções não são suficientes para determinar as conseqüências das ações individuais e sociais. Existe uma estrutura social dominante que limita e condiciona as possibilidades e as conseqüências das nossas ações (sem esquecermos dos limites e possibilidades colocados pela própria natureza). Na prática isto significa dizer que boas intenções ou vontade política não são suficientes, que há uma diferença entre a intenção da ação e os seus resultados; e entre o que "deveria ser" e o que "pode ser".
Há aspectos da nossa vida e da sociedade que podemos mudar para melhor mesmo antes das transformações estruturais; mas há outros que não podemos antes destas grandes tansformações nas principais instituições da sociedade e da própria estrutura sócio-política. Por isto, precisamos trabalhar de uma forma articulada em vários espaços e níveis e com perspectivas de tempo adequadas para cada um deles. Tudo isto, sem esquecermos que há também coisas boas e desejáveis que estão além da nossa condição humana e da história. Perseverar na luta dentro destas contradições e frustrações tem a ver com sabedoria espiritual.

Capitalismo, pecado estrutural e a luta espiritual

Jung Mo Sung

No artigo anterior, "Pecado estrutural e as boas intenções", vimos que na dinâmica social nem tudo depende de boas ou más intenções, na medida em que as estruturas sociais, econômicas, culturais e de outros tipos têm um papel significativo nos resultados das ações de indivíduos e de grupos sociais. Quando a Teologia da Libertação (TL) utiliza a noção de "pecado estrutural" para criticar o capitalismo está mostrando que as boas intenções não são suficientes para solucionar os graves problemas sociais e ecológicos que enfrentamos. É preciso modificar profundamente as estruturas do capitalismo; em outras palavras, é preciso construir uma sociedade alternativa ao capitalismo.
Nesta crítica ao capitalismo, precisamos tomar cuidado para não cairmos na tentação de uma crítica "absoluta" a todos elementos econômicos e sociais que fazem parte do capitalismo. Por exemplo, relações comerciais, sistema de crédito, mercados financeiros e a propriedade privada são partes importantes no sistema capitalista, mas isto não quer dizer que em uma sociedade alternativa devamos acabar com tudo isso só porque estão presentes no capitalismo. O que caracteriza o capitalismo (como todo qualquer sistema) não é as suas partes, mas sim a forma específica como as partes estão organizadas no sistema. As partes por si não nos dizem se um sistema é ou não uma estrutura de pecado, mas a lógica que rege a organização do sistema e o espírito que o move.
O objetivo fundamental que norteia toda a lógica capitalista é a acumulação de mais capital. O resto é resto! Se preciso for, provoca guerras civis em países, como na África, para controlar e expropriar riquezas minerais; ou então, provoca desemprego em massa em certas regiões do mundo porque consegue explorar mais os trabalhadores em outras partes. O pior é que neste sistema econômico atual, empresas que fogem desta lógica têm muita dificuldade em sobreviver.
Mas, o que move todo este sistema não é só a parte mais visível do sistema. Há também um espírito que o move. Pois, sem um espírito que dá sentido e energia, nenhum sistema social se reproduz e desenvolve. E o espírito que move o capitalismo, o "espírito capitalista" (Weber), é o desejo de acumulação infinita riqueza e a ostentação do consumo como o sentido último da vida. Não se busca bens econômicos (materiais ou imateriais) para viver; mas, se vive para alcançar mais riqueza. Nesta cultura, uma pessoa se afirma como pessoa na medida em que consome mais e "melhor" (mercadorias de marcas famosas).
Este espírito capitalista está "colonizando" as mentes e corações de quase todas as pessoas e povos do mundo. Até jovens chineses educados no comunismo ou asiáticos de tradições budistas têm como um dos seus desejos mais ardentes comprar carros novos e equipamentos eletrônicos, assim como fazem norte-americanos e europeus. Uma grande parte de experiências de fascinação e de sagrado que ocorre no mundo se dá hoje no âmbito do consumo. Podemos perceber a força disso também nas igrejas cristãs e em outras religiões: cristãos que escolhem a igreja de acordo com o seu "poder" para aumentar o padrão de consumo; ou então, padres, pastores e ministros religiosos mais preocupados com salários altos e consumo do que em servir a Deus e ao seu povo que sofre de mais diversas formas.
A expansão deste espírito capitalista para todos os cantos do mundo é uma exigência da própria dinâmica econômica capitalista globalizada. A acumulação "infinita" do capital exige um mercado mundial - que, por sua vez, exige a homogeneização dos desejos -, assim como a imposição de um único sentido de vida.
Esta é a razão pela qual não basta somente exigirmos boas intenções ou pequenas reformas econômicas e sociais, deixando de lado as questões estruturais (a lógica e o espírito) do sistema capitalista. Precisamos lutar nestes dois âmbitos: (a) reformas e de iniciativas concretas para melhorar as condições de vida dos pobres no curto prazo e; (b) profundas mudanças estruturais. E nesta luta, eu penso que as religiões em geral e o cristianismo em particular têm a grande tarefa de desvelar e criticar o espírito que move o capitalismo e de apresentar um sentido mais humano para as nossas vidas. Esse sentido humano pressupõe resgatar o sentido original da vida: o trabalho é mais importante do que o capital; e a economia deve estar em função da vida digna para todos e todas.
Sem esta luta espiritual contra o espírito do capitalismo, não poderemos superar o pecado estrutural em que vivemos. A reconciliação com Deus e com a comunidade humana exige um
novo espírito movendo a humanidade. Exige que criemos novos tipos de relações humanas e sociais e um novo sentido de vida que testemunhem a presença do Espírito entre nós. Por isso, a tarefa fundamental do cristianismo hoje é espiritual. Lutar pela vida dos mais pobres e, por isso, por uma sociedade alternativa ao capitalismo não é apenas um "compromisso social" ou uma articulação entre a "fé e política", mas é viver a "vida no Espírito" contra o espírito do "mundo".
Por tudo isso, eu penso que uma das tarefas e contribuições
fundamentais do cristianismo hoje se dá no campo espiritual: no testemunho da experiência da graça no reconhecimento mútuo entre pessoas - independente do seu nível de consumo, da sua religião, etnia ou... -; e da vivência da "fé agindo na caridade" (Gal 5,6) - lutando por uma outra sociedade.

* Professor de pós-grad. em Ciências da Religião da Univ. Metodista de S. Paulo e autor de Sementes de esperança: a fé em um mundo em crise


Idolatria do capitalismo e amor aos inimigos

Jung Mo Sung

Na nossa luta espiritual contra o pecado estrutural do capitalismo (vide o artigo anterior, "Capitalismo, pecado estrutural e a luta espiritual"), precisamos tomar cuidado para não deixarmos nos levar pelo "espírito do mundo". Muitos de nós iniciamos nossa luta em favor dos pobres a partir da indignação frente à situação de injustiça social ou de uma interpelação de rostos e olhares de pessoas sofridas. Essa indignação, muitas vezes, se transforma em raiva por causa da indiferença de muitos e da oposição sistemática da elite e dos seus serviçais às transformações sociais necessárias e urgentes. Da raiva frente a uma situação à raiva das pessoas que se beneficiam das injustiças é um passo pequeno.
Assim, o que nasceu de uma indignação ética e de amor pode se tornar algo diferente, algo movido pela raiva, que se encaminha para o ódio: uma luta movida pelo desejo de "vingança", pelo desejo de inverter a situação contra os inimigos (que podem ser os inimigos do povo, da classe ou dos pobres). Imbuídos desse tipo de desejo, os nossos discursos e ações passam a ser marcados mais pelo espírito de raiva/ódio; ao invés de um espírito imbuído de esperança de novos horizontes mais humanos.
Precisamos discernir as lutas contra o capitalismo com um critério ético-teológico para não reproduzirmos, mesmo que inconscientemente, a lógica da dominação. Muitos da elite têm ódio do povo que luta porque sentem medo de perder os seus privilégios materiais e a sensação de que são pessoas "especiais ou abençoadas", superiores às "gentinhas". Entretanto, se não tomarmos cuidado podemos reproduzir nas nossas lutas a mesma lógica do ódio, que - como nos lembra Pe Comblin - "vem também da raiva daqueles que se sentem rejeitados ou sem futuro".
Odiar o inimigo faz parte do instinto humano. Mas o cristianismo propõe uma novidade que vai além: "Ouviste que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem" (Mt 5,43-44). Mas, como amar os inimigos, aqueles que compactuam com o pecado estrutural e reproduzem no seu cotidiano os pecados de dominação, exploração e desprezo pelos mais pobres e fracos?
Uma pista para aprender a amar ou perdoar os inimigos está nas palavras de Jesus na cruz: "Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem" (Lc 23,34).


Este pedido revela o amor de Jesus para com todos, mas também nos revela que há algum tipo de incompreensão ou de erro da parte dos que o matam. Quando compreendemos o que e por que eles não sabem, torna-se mais fácil (mas nunca fácil) amarmos os nossos inimigos.
É claro que Jesus não está dizendo que os seus algozes não sabem que o estão matando. O que eles não sabem é o significado mais profundo desse acontecimento. Isto porque estão mergulhados no espírito de mentira e assassinato: eles crêem que o cumprimento das leis do Império Romano ou do Templo - expressões da injustiça - é o caminho de uma boa sociedade, e até mesmo da salvação. Como diz
São Paulo, a verdade foi feita prisioneira da injustiça (Rom 1,18).
Hoje também há muitos que realmente crêem que não há salvação da sociedade fora do sistema de mercado capitalista e da obediência fiel e até cruel, se preciso for, das suas leis. Para desvendar e criticar a exigência de sacrifícios de vidas humanas em nome do mercado capitalista, alguns teólogos da libertação (em especial Hugo Assmann) elaboraram o conceito de "idolatria do mercado". Ídolo é um produto das ações e interações humanas (um objeto ou uma instituição como mercado, Igreja ou Estado) que é elevado à categoria de absoluto, de sagrado, e em nome dele se exige sacrifícios de vidas humanas. Quem crê no ídolo (para esses, deus), mata com consciência tranqüila, pois mata em nome de seu deus. Os sofrimentos impostos sobre os mais fracos e pobres são justificados como sacrifícios necessários para o progresso ou salvação.
Por isso, muitos economistas que hoje funcionam como teólogos ou sacerdotes do sistema de mercado capitalista dizem com bastante naturalidade que a única forma de superar os graves problemas de pobreza e exclusão social é expandir a submissão às leis do mercado a todos os cantos do mundo.
A crítica à idolatria do mercado não significa uma crítica ao mercado como tal, mas sim uma crítica à absolutização das leis do mercado e as exigências sacrificiais que nascem dessa absolutização. O mercado é algo necessário às economias modernas, mas deve ser limitado, complementado e até direcionado pelas ações do Estado e também da sociedade civil.
Os conceitos de pecado estrutural e de idolatria se complementam: o primeiro enfoca mais a estrutura do capitalismo, enquanto que o de idolatria critica mais o espírito que move essa estrutura e os seus agentes.
Ao entendermos que o pecado estrutural do capitalismo é movido pelo espírito de idolatria, poderemos lutar contra o sistema capitalista, ao mesmo tempo, em que procuramos amar os nossos inimigos. As nossas lutas não serão movidas por raiva ou ódio, mas por amor aos pobres e também aos inimigos. Assim, no seguimento a Jesus, estaremos mostrando aos indiferentes e aos idólatras que a nossa causa é eticamente superior e que os nossos objetivos fazem bem não somente aos pobres, mas a toda humanidade e a todo planeta.

(a reflexão será continuada no próximo artigo: a cobiça do consumismo e a idolatria)

* Professor de pós-grad. em Ciências da Religião da Univ. Metodista de S. Paulo e autor de Sementes de esperança: a fé em um mundo em crise

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