Por Marcos Monteiro
"E as multidões, tanto as que o precediam, como as que o seguiam, clamavam: Hosana ao Filho de Davi!” Mt 21,9a.
Uma tradição se constrói através de mecanismos complexos acionados por diversos atores em um período histórico de múltiplas referências. O messias “Filho de Davi” é dessas tradições propugnadas por diversas elites, mas ressignificadas de várias formas pelo povo em geral.
Ao lado do Filho de Davi que restaura a dinastia real e legitima o templo, a esperança popular constrói um tipo de rei atento ao clamor do povo, representante dos excluídos, apto a enfrentar leões e gigantes e a apaziguar tiranos enfurecidos através de sua flauta mágica.
O conjunto de textos organizados aqui parecem tratar da questão da tradição do Filho de Davi e de como Jesus se sente à respeito da mesma e se ele mesmo se enquadra confortavelmente nessa tradição.
O messias saudado como libertador à maneira de Davi.
Mt 20,29 – 21, 16
O tema do messias “Filho de Davi” aparece primeiro através do clamor incômodo de dois cegos, à saída de Jericó. Para a multidão, os dois estão atrapalhando a marcha pelo poder, atrasando a construção social do novo Reino. Para Jesus, os cegos representam oportunidade, eles são a própria marcha, caminho e arrancada final para a construção da nova ordem.
Dois companheiros são enviados sorrateiramente a uma aldeia para ajudarem a preparar a próxima cena. Trazem de uma aldeia uma jumenta e o seu jumentinho. É como se houvesse uma grande rede de colaboradores dispostos a apoiar a revolução.
O mesmo tema é trazido agora pelas multidões que cantam “Hosana ao Filho de Davi”. Lembram as campanhas vitoriosas do jovem Davi, antes ainda de ser rei, saudado por todos, mas com uma diferença. De modo ambíguo, Jesus vem montado em um jumentinho, entre o ridículo e o profético, ao evocar antiga profecia de Zacarias.
Esse rei que, segundo a antiga profecia, deveria anunciar paz às nações, se dirige ao templo e promove uma cena de violência contra os cambistas e comerciantes, símbolos de uma religião que estava a serviço do poder econômico.
A partir desse ato em que se apodera do templo, seu primeiro pronunciamento é denúncia de opressão e exploração e seu primeiro ato é de acolhimento de cegos e coxos que são curados dentro do templo, contrariando proibições claras.
Na tradição sobre a tomada da cidade que se tornará a mesma Jerusalém em que Jesus se encontra agora, Davi mandara ferir todos os cegos e coxos, por quem havia tomado um ódio mortal. Esse novo messias, acolhe e cura exatamente coxos e cegos.
Mas, diante da indignação dos principais sacerdotes e escribas, Jesus parece aceitar e autorizar os cânticos infantis, assumindo, portanto, a figura do “Filho de Davi”.
A autoridade do messias não vem da dinastia davídica
Mt 21,17 – 22,14
Voltando do pernoite em Betânia, no caminho do templo, com fome, Jesus amaldiçoa uma figueira que seca imediatamente por não ter dado fruto. A lição aqui é clara: do mesmo modo que no Reino de Deus o templo precisa ser casa de oração e acolhimento, até as árvores, a própria natureza, devem ser benignas, prontas para saciar a fome de todos.
O conjunto desses atos levam-no a ser interrogado pelos principais sacerdotes e anciãos do povo sobre a fonte de sua autoridade.
Curiosamente, em vez de se reportar à lei, ou à tradição do “Filho de Davi”, Jesus se reporta à figura ambígua e popular de João Batista. É como se declarasse autorizado pela mesma fonte que autorizara o batista. Nas histórias sobre Davi, os profetas são aqueles que o contestam e se contrapõem aos seus atos. Jesus recorre à tradição profética e não à tradição que põe templo e palácio no mesmo patamar.
Dentro dessa temática, as três parábolas seguintes colocam respectivamente algumas idéias.
Primeiro, no Reino dos Céus não haverá o elitismo da corte de Davi, elite intelectual que somente fala mas não faz. Estarão no Reino publicanos e meretrizes, como aqueles que não tendo um discurso muito correto, estão mais dispostos a uma prática de justiça, mais próxima dos valores do Reino dos Céus.
Depois, os ricos estão ocupados demais consigo mesmos e com seus projetos de sucesso, para dar atenção ao Reino. Por isso, é preciso chamar imediatamente a todos os excluídos da sociedade. No meio do banquete, um pobre é encontrado sem roupa digna, como a significar que mesmo entre os pobres há também injustiça e opressão.
Definitivamente, o messias não pode ser o Filho de Davi
Mt 22,15-46
A cena descreve Jesus como aquele que se apropriara do templo, quase como a sua base de operações, sentado a ensinar e a curar, atos típicos da sua mensagem sobre a chegada do Reino dos Céus. Não faz questão de invadir o palácio. Ao mesmo tempo que quebra a tradição de conluio entre templo e palácio, declara que o perigo maior vem do poder religioso.
Sucessivas comitivas, representantes de segmentos distintos das classes dominantes da sociedade, pretendem minar a sua autoridade, armando ciladas para desacreditá-lo perante a opinião pública.
A lógica das respostas, em momento nenhum é a lógica da tradição do palácio ou do templo, ou seja, a lógica da tradição do “Filho de Deus”.
Os tributos não são coisa de Deus, são de César, ou seja não pertencem à lógica do Reino dos Céus; as relações afetivas no Reino dos Céus não são as mesmas da terra: as mulheres não são símbolos de poder como eram no reinado de Davi e de Salomão; a ressurreição é decorrente do caráter relacional de Deus e o mandamento do amor é maior do que a lei.
Quando todos desistem e se calam, Jesus contra-ataca com a pergunta sobre a declaração de Davi sobre o messias. Se o messias, o Cristo a ser enviado por Deus, é chamado de Senhor por Davi, então, esse messias não poderia ser de modo nenhum o “Filho de Davi”.
Rejeitando a complexa tradição sobre o “Filho de Davi”, tanto em sua vertente oficial quanto em sua feição popular, Jesus se coloca como um messias diferente. Em vez de ferir cegos e coxos, acolherá e curará os mesmos, em vez de conquistar Jerusalém pela força das armas, conquistará pela força da palavra, pelo vigor da idéia e dos ideais. Enfrentará todo o poder e toda a violência do sistema com o próprio corpo e o único sangue que irá derramar será o seu próprio. E derrotará no final todo o Império pela lógica das vítimas e não dos vitimadores.
Feira de Santana, 26 de novembro de 2008
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