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segunda-feira, 23 de agosto de 2010

“O Deus do rico não é o Deus do pobre”


O primeiro e principal instrumento que a Igreja tem nas mãos é
o teológico. É no silêncio da voz teológica que a ansiedade e a
perplexidade da Igreja extravasam em gritos e gemidos. A teologia
fornece alguns aspectos indispensáveis ao pastor e à Igreja
que desejam se posicionar na cidade e oferece respostas para as
dúvidas e inquietações que acompanham aqueles que se movimentam.
A teologia bíblica apresenta três momentos que muitas vezes
se confundem e se sobrepõem: a rejeição da realidade, a revolução
da realidade e a revelação da realidade.
O primeiro momento é a rejeição imediata da realidade tal
como a percebemos. Essa é uma característica de toda reflexão,
mas de forma especial da reflexão teológica. Para o teólogo (que
também é um pensador) as coisas não são o que aparentam ser e
as realidades não são fechadas em si mesmas — são enigmas e
proposições que revelam e escondem, ao mesmo tempo, o objeto
dado. O teólogo não rejeita a realidade em seu próprio nome ou
em nome de alguma ciência, propósito ou causa — ele a rejeita
em nome de Deus.
Mas a teologia é também um incessante e incansável revolver
da realidade. Além de rejeitar, ela procura descobrir a verdade
escondida atrás das aparências. Para tanto, utiliza, junto com a
Bíblia, os recursos oferecidos pelas ciências humanas. A teologia
se faz através de um trabalho paciente e contínuo sobre o material
bruto fornecido pela vida. É a difícil tarefa de sobrepor-se ao
engano das falsas evidências.
Por último, a teologia não só rejeita e revolve, mas também
desmascara o mistério escondido por trás das aparências e contido
na essência das coisas. Rejeita a aparência, busca o auxílio das
ciências, mas continua sua caminhada em busca das realidades
últimas, procurando identificar e demonstrar a misteriosa ação
de Deus em meio à história dos homens e à proposição das
coisas. Esse mistério, revelado plenamente na pessoa de Jesus,
faz com que a teologia seja, acima de tudo, uma reflexão bíblica.
A Bíblia inteira está intimamente relacionada à pessoa de Jesus,
revelação máxima de Deus, evento supremo da história. Por
isso, nossa porta de entrada das Escrituras é o próprio Jesus. Isso
nos impede de cometer erros, tanto de um liberalismo cético
quanto de um literalismo redutor.
A partir dessa ótica, o Antigo Testamento pode ser estudado
como a história e a teologia do povo de Jesus, em que a esperança
da vinda do Messias ocupa lugar fundamental, e também como
a Bíblia do próprio Jesus. O Novo Testamento por sua vez deve
ser entendido como o encontro da história e da teologia de Jesus
com a história e a teologia da comunidade de Jesus (a Igreja).
Assim, Jesus, a Palavra de Deus encarnada, ilumina toda a Bíblia
e a torna relevante para todos nós.
Isso faz da teologia uma atividade subversiva, ao propor mudanças
fundamentais nos esquemas em que vivemos. Eternamente
insatisfeita, permanentemente crítica, a teologia é o terror dos
tiranos, o cansaço dos cientistas e uma ameaça para todos os
sistemas, inclusive os religiosos.
A teologia praticada no nosso século é inadequada e inconsistente,
tanto na forma como no conteúdo. Ela é insuficiente na
forma por não rejeitar a realidade tal como se apresenta, não
revolver essa mesma realidade com os instrumentos científicos
de análise e não demonstrar (ou demonstrar apenas parcialmente)
o mistério de Deus na história.
Um exemplo disso é o modo como a Igreja aborda a si mesma
e à cidade. A Igreja percebe a cidade como fruto de um processo
histórico contínuo e como uma extensão geográfica do campo,
ou seja, algo perfeitamente natural e harmônico. Isso significa
que a Igreja não sabe observá-la. A cidade atual representa uma
descontinuidade, fruto de uma ruptura histórica e geográfica. A
urbanização nos países do Terceiro Mundo acontece tão rapidamente
que as cidades se transformam num câncer histórico não
planejado, chegando mesmo a se assemelhar visualmente a um
tumor cancerígeno:
A imagem histológica das células tumorais, completamente
uniformes e pobres em estruturas, tem semelhança
desesperadora com a fotografia aérea de um subúrbio moderno,
com suas casas padronizadas projetadas por arquitetos
desprovidos de uma real cultura, fruto da concorrência
apressada.5
O discurso da Igreja, exposto em suas liturgias, sermões e
hinos, transmite uma falsa idéia de convivência fraterna entre a
cidade e o campo. Há entre o mundo rural e o urbano um fosso
geográfico que se traduz num abismo cultural cada vez maior.
Esse abismo, não captado pela Igreja, impede-a de perceber as
suas próprias contradições e inadequações.
A reflexão teológica da Igreja acerca de si mesma reflete a sua
própria situação formal e interfere na percepção da realidade
circundante. Na verdade, a Igreja elabora sua auto-imagem a
partir de suas estruturas e imagina o mundo a partir de sua autoimagem.
Assim como sua estrutura é fracionada, sua teologia é
denominacional e fragmentária. Por não experimentar uma unidade
formal, ela não se vê como uma única Igreja, nem trata a
cidade como um todo complexo, mas como uma série de pedaços
separados e estanques.
Torna-se cada vez mais evidente o fato de que uma teologia
denominacionalista, e, portanto fragmentária, não resolve definitivamente
as questões do cristão que vive nas cidades. Uma das
características principais da cidade é a facilidade de acesso e uma
das características da igreja é a sua diversidade de formas e modelos.

O cristão urbano está em contato permanente com várias
expressões da igreja e com irmãos de diferentes igrejas. Desse
modo, ele tem experimentado na prática a realidade de uma
única Igreja, porém na igreja local procuram ensiná-lo a celebrar
as divisões. É preciso muito discurso para fazer o recém-convertido
entender que ele é diferente dos irmãos de outras igrejas. O
discipulado da fragmentação tem tomado o lugar do discipulado
da unidade.
A unidade é a forma da Igreja dada pela revelação bíblica; a
fragmentação é a forma que a realidade dá a Igreja. Uma teologia
que aceita essa realidade sem revolvê-la e sem descobrir o mistério
da unidade que está além de toda aparência é impotente para
servir à igreja e falha em sua reflexão, por fazê-la parcial e
fracionadamente. Conseqüentemente, a estrutura divisionista da
Igreja se mantém contra toda a realidade teológica, resultando
em permanente tensão.
O conteúdo de nossa reflexão teológica se relaciona muito
mais a uma teologia de classe média do que a uma teologia
bíblica. O Deus que apresentamos nos púlpitos de nossas
igrejas é um Deus que não se posiciona e um Cristo que não
toma partido. Esse tipo de pregação mantém as igrejas omissas e
passa ao largo das questões que afligem a cidade.
Numa visita a um irmão, recém-convertido, morador de uma
das favelas próximas a nossa igreja, ouvimos esta história exemplar:
Ao entregar um quilo de carne na casa de um deputado, um
açougueiro avistou a mesa posta para o café da manhã, com tudo
que podia imaginar.
— Mesa farta, doutor! — disse o açougueiro.
— Graças a Deus! — exclamou o deputado.
— É, doutor — replicou o açougueiro —, o Deus do rico
não é o mesmo Deus do pobre. Na minha casa, quando tem pão
falta manteiga e quando tem manteiga, falta pão. Por isso,
doutor, o Deus do rico não pode ser o mesmo Deus do pobre.
A teologia bíblica nos apresenta um Deus que toma partido e
um Jesus Cristo que se envolve ativamente com a realidade que o
cerca. A face distintiva de Javé, no Antigo Testamento, é a sua
justiça, que o faz tomar o partido do pobre, do oprimido e do
marginalizado. Muitas vezes esse Deus bíblico faz ressoar a sua
voz na cidade e age claramente ali, apesar da Igreja e de sua
teologia. Sempre que surge uma reivindicação, um clamor ou
uma luta na cidade, Deus está presente, não para apaziguar os
ânimos ou acomodar as coisas, mas para tomar o partido dos
injustiçados, dos empobrecidos e espoliados. Por isso a participação
da Igreja em clamar por justiça é uma tarefa essencial;
quando isso não acontece a Igreja peca por omissão.
De modo semelhante, o Jesus da Bíblia é diferente do Cristo
dos púlpitos. O Novo Testamento nos apresenta um Jesus que se
compadece e se envolve com as pessoas, que enfrenta e confronta.
Sua posição é claramente favorável ao pobre, ao oprimido e ao
marginalizado, contra o rico e o opressor. Qualquer leitura clara
dos evangelhos nos apresenta a figura de Jesus tomando o partido
dos pequeninos e sendo visto com desconfiança pelos poderosos
e dominadores, muitas vezes confrontados por ele duramente.
Sem dúvida alguma, nós refletimos no púlpito a cisão artificial
entre o Cristo da fé e o Jesus da história, provocando assim um
abismo entre fé e vida, fé e história. Nada é mais evidente na
cidade do que uma igreja que não se envolve com ela, e nada é
mais evidente na Bíblia do que um Jesus envolvido, participando
ativamente de sua época e história.
A Igreja precisa assumir imediatamente o Deus e o Jesus
dos pobres, a fim de servir mais claramente à cidade.

Trecho do livro: "Um Jumentinho na avenida".

Um comentário:

  1. DOUTOR.

    Nós, seres humanos, vivendo neste planeta, cheio de mistérios, temos que saber avaliar as diferenças que há entre nós e nossos irmãos. Muitos se empolgam com o fato de terem freqüentado uma faculdade, tornando-se com isso doutores. O que temos que avaliar, é como conseguimos chegar a esta posição de formados e com títulos de doutores, ou qualquer outro tipo de curso universitário. Aproximadamente noventa por cento, o mérito de freqüentar uma faculdade, não esta na inteligência privilegiada do estudante. Na verdade o mérito esta no poder aquisitivo do seu pai. Há aqueles que se formam para alguma profissão importante, ou mesmo chegando a serem doutores, com seus próprios meios, lutam bravamente e conseguem chegar lá, mas isso é raridade, a maioria esmagadora esta no poder aquisitivo do seu pai.
    Sendo assim as pessoas simples, que exercem profissões humildes, não precisam se sentir constrangidas por não terem nunca freqüentado uma faculdade, pois a falha não esta no humilde trabalhador, a falha esta no poder aquisitivo do seu pai.

    Este texto foi extraído do livro crônicas Indagações e teorias, autor Paulo Luiz Mendonça. Editora Scortecci.

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