Por Marcos Monteiro
Gn 4, 8-10.
“Disse Caim a Abel, seu irmão: Vamos ao campo. Estando eles no campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão, e o matou.
Disse Javé a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Não sei: acaso sou eu guardador de meu irmão?
E disse Javé: Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim.”
Na narrativa bíblica, a primeira guerra da humanidade destruiu um quarto da população mundial e foi guerra religiosa: Caim matou Abel porque o seu ritual não conseguiu agradar a Deus.
Claro que o texto, em sua estranheza, nos remete às brumas de um passado em que pode servir a múltiplas objetivações. Ecos, talvez, dos conflitos entre pastores e agricultores, ou entre coletores e caçadores, ou degradação dos cananeus, atrelando-os a Caim, ou outra coisa. De todo o modo, na narrativa completa (Gn 4,1 – 4,16), há situações e lições deliciosas.
Primeiro, o estranho procedimento de Javé. Caim é o primogênito dado de presente a Eva, (o seu nome é exclamação de gratidão) e leva ofertas pacíficas, do campo, daquilo que tinha. Abel é figura insignificante (só se torna importante quando morto). Abel sacrifica um cordeiro e agrada a Javé, desse modo.
A irritação de Caim parece legítima: Deus se agradou de ofertas sangrentas, obtidas por meio violentos, e não se agradou da sua oferta, aparentemente mais lógica. Primogênito e preferido, se sente agora preterido. Não podendo dirigir sua ira contra Deus, mata Abel, em ira sagrada. Comete a violência maior: sacrifica o seu irmão no altar de sua santa fúria.
No meio de nossas santas frustrações, o desafio do outro. O outro nos ameaça nesse lugar que podemos chamar de região do ser. O outro, pode se tornar o preferido de Deus, usurpando o nosso lugar de direito. Caim levanta a pergunta chave: “Sou guardador?”.
A nossa humanidade pode ser entendida entre Caim e Abel e suas matizes gradativas. Caim é o escolhido de Deus que mata o outro no seu imponente direito. Abel é o insignificante pastor de ovelhas a quem Deus atribui maior significado. Tratamos o insignificante Abel com atitudes que vão do desprezo à violência.
Deus cobra do agricultor Caim a atitude de um pastor, como Abel. Caim deveria ter sido o pastor de Abel. Sendo primogêntio de Deus se tornara automaticamente o guardador e cuidador de seu insignificante irmão. Como cuidadores, a alegria do outro nos leva à exultação.
O próprio Javé se propõe agora a ser o cuidador de Caim. Aquele que violentamente matou não pode, estranhezas de Javé, ser morto violentamente. Javé coloca um sinal na testa de Caim, sinal de graça e de cuidado. Como agricultor, Caim demonstrara desconhecer os desejos da terra e seria agora um estranho a errar pela mesma. Mesmo assim, estaria debaixo do sinal gracioso de Deus. Não poderia sofrer morte violenta, não poderia ser objeto de vingança.
A terra não suporta violência. Os rios que correm pelas entranhas da terra são rios de água, rios de vida. Ninguém tem o direito de transformar a terra em leito de rios de sangue, rios de morte, nem mesmo como vingança. Vingança e justiça não são sinônimas no dicionário de Javé.
Vivemos a nossa interioridade entre a fúria imponente do agricultor Caim e o cuidado pastoral, cotidiano e insignificante de Abel. Embeber as nossas mãos no sangue do cordeiro, pode ser promessa a Javé de nunca manchar as mãos com o sangue do outro. O trabalho paciente, monótono e insignificante de pastorear ovelhas, pode ser o símbolo da nossa responsabilidade de pastorear o outro.
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