Por Jung Mo Sung
Em um artigo recente, eu escrevi que uma das questões fundamentais do nosso tempo é que "o Império global de hoje domina por sedução”. Diferentemente de todos os impérios anteriores, o atual sistema capitalista global não tem no poder e força militar o seu principal instrumento de expansão e dominação. Usa sedução e fascinação, a ostentação do seu modo de vida (na verdade da sua elite) como sua arma de conquista.
Pessoas e povos que se sentem fascinação pelo modo de viver de um grupo assume este modo como o seu modelo de vida, deseja ser incorporado neste mundo e não deseja nada diferente e, por isso, crê que não há alternativas. E o seu medo é não ser reconhecido pela elite do mundo e ser expulso do "banquete do mundo”.
Fascinação, medo e ausência de alternativa são características do "sagrado”. E os ideólogos do Império sabem exploram muito bem essa aura religiosa em que está envolto o sistema capitalista atual e reforçam esse processo de sacralização do Império. Em um mundo assim, as palavras do jovem Marx se tornam atuais novamente: "A crítica da religião é a condição preliminar de toda crítica”. Sem a crítica da religião, não é possível ou eficaz as críticas políticas e econômicas, pois o que é visto como sagrado não pode ser criticado.
É claro que a crítica imprescindível da religião hoje não é a da cristandade da época de Marx, mas o capitalismo como a "religião da vida cotidiana”. Esta consciência do caráter religioso, sagrado, do capitalismo não é apenas de Marx ou de alguns teólogos da libertação que desenvolveram a crítica da idolatria do mercado ou do capitalismo como a tarefa teológica principal – ao invés da justificação da fé ou do sagrado para um mundo aparentemente não-religioso –, mas também encontramos em autores como Max Weber e W. Benjamim. Permita-me fazer uma longa citação de Weber: "[Hoje] Tudo se passa, portanto, exatamente como se passava no mundo antigo [...]. Os gregos ofereciam sacrifícios a deus das cidades; nós continuamos a proceder de maneira semelhante, embora nosso comportamento haja rompido o encanto e se haja despojado do mito que ainda vive em nós. [...] A religião tornou-se, em nosso tempo, ‘rotina quotidiana’. Os deuses antigos abandonam suas tumbas e, sob a forma de poderes impessoais, porque desencantados, esforçam-se por ganhar poder sobre nossas vidas, reiniciando suas lutas eternas.”
Os sacrifícios religiosos continuam sendo oferecidos aos deuses, só que o deus de hoje é uma força impessoal (o sistema de mercado global) que domina as nossas vidas cotidianas e demanda sacrifícios de vidas humanas, as dos mais pobres. Como vivemos em uma sociedade "ilustrada” e desencantada, as linguagens e os sacrifícios não são mais explicitamente religiosos, mas –como diz Weber– tudo se passa como no mundo Antigo. Não perceber isso e pensar que a tarefa dos cristianismos e teologias da libertação é apresentar e justificar o sagrado ou deus no mundo de hoje é –penso eu– perder a criticidade teológica e a perspectiva profética do cristianismo.
Diante desta realidade, há uma tarefa que o cristianismo de libertação e, em particular, a teologia da libertação precisam assumir como uma tarefa fundamental: a crítica da idolatria, a crítica prática e teórica da religião dominante, do sagrado que gera fascinação, medo e senso de absoluto em torno do capitalismo global. É uma crítica que, se os setores religiosos e teologias não fizerem, ficará uma lacuna na luta por um por outro mundo, e outra globalização.
Teologias de libertação críticas de idolatrias não são necessárias e importantes porque alguns teólogos querem manter a relevância social das teologias, mas sim porque podem contribuir de modo substancial no desmascaramento da fascinação e absolutização do atual sistema de dominação e opressão em escala global.
Se o que foi dito tem algum sentido, a pergunta que se segue é:em que consiste a crítica prática e teórica da idolatria do mercado?
Tarefas do Cristianismo de Libertação (II): modernidade e a idolatria
No artigo anterior, eu apresentei a ideia de que o atual Império global domina por sedução, fascinação, ao mesmo tempo em que impõe medo e a idéia de que não há alternativa ao sistema de mercado capitalista. Características de um sistema sagrado, que por ser sagrado exige sacrifício de vidas humanas. (Sagrado exige sacrifício, enquanto Deus da Bíblia quer misericórdia em lugar de sacrifico. Os profetas chamaram o deus/sagrado que exige sacrifício de ídolo.) Diante deste tipo de capitalismo, que Marx chamou de "religião da vida cotidiana” fundada na fetichização da mercadoria e do capital, a crítica da religião se tornou novamente a condição preliminar de toda crítica.
Sem dúvida, uma das críticas mais potentes contra esta "idolatria do mercado” foi feita por alguns teólogos da libertação, como Hugo Assmann, Franz Hinkelammert, Jon Sobrino e Júlio de Santa Ana. Infelizmente a maioria destes livros está fora do catálogo das editoras e é pouco discutida ou estudada pelas novas gerações. Muitas das discussões no campo da teologia não consideram o atual sistema econômico-social como um tema teológico (no máximo como um tema da ética social ou da doutrina social), e, por outro lado, muitos dos cientistas sociais críticos não percebem o caráter sacral e religioso do atual sistema global. Entre cientistas sociais mais conhecidos no Brasil, Michael Löwy é um dos poucos que aprofundaram essa questão.
Esta separação ou distinção entre a teologia/ciências da religião e as ciências sociais como dois campos de conhecimento autônomos e independentes dificultam a compreensão mais acurada e crítica do caráter religioso do capitalismo, que Marx, M. Weber e W. Benjamin, entre outros mestres do passado, já haviam apontado. Por isso, eu penso que um dos passos fundamentais para fazermos uma crítica teórica da idolatria do mercado é repensar a própria concepção da razão e do fazer ciência gestada no mundo moderno.
Para entender melhor este desafio, é preciso primeiro criticar ou repensar a própria concepção do que é a modernidade. Normalmente a modernidade é compreendida e também criticada pela pretensão de construir um mundo baseado na razão e pela proposta de emancipação da humanidade ou de revolução libertária. A crítica pós-moderna se concentra na crítica da razão moderna e na pretensão de construir um "novo” mundo a partir da noção de revolução.
O problema é que nós assumimos a noção de modernidade que o próprio mundo Ocidental e moderno, através dos seus intelectuais, pintou sobe si, isto é, assumimos a ideologia do mundo moderno como a "verdade” sobre a modernidade. Se olharmos bem, veremos que a modernidade foi construída sobre a exploração colonial do continente que eles chamaram de América. Para acumular ouro e prata, escravizaram primeiro os nativos do Continente e depois os negros da África. Não satisfeitos com milhões de mortes causadas em nome da acumulação "racional” da riqueza/capital, colonizaram também os países da África e da Ásia. Em resumo, no outro lado da razão moderna está o irracionalismo de genocídios em nome da acumulação do capital-ouro; o lado luminoso da ilustração esconde o lado obscuro da modernidade, o seu lado irracional, sacrificial e opressivo. Muito antes do holocausto –que no fundo é resultado extremado da razão moderna–, Europa moderna já tinha causado genocídios na África, América e Ásia. Genocídios esses que pouco escandalizaram a Europa por serem de povos considerados inferiores pela razão moderna.
A base material da ilustração-razão moderna foi construída com a conquista, escravidão e exploração. Como Dussel já mostrou, a afirmação que iniciaria a modernidade, "Penso, logo sou!”, foi procedida e tornada possível por "Conquisto, logo sou!”
Eu penso que a separação radical entre assuntos teológicos e sociais, entre a dimensão religiosa e a racional da sociedade, tem a ver com esta tentativa de esconder o lado irracional, sacrificial, idolátrico da modernidade do seu lado aparentemente racional e ilustrado.
O mundo moderno não é anti-religioso. Ele é contra religiões que se opõe à racionalidade da acumulação do capital e utiliza-se das religiões ou grupos religiosos que servem ao seu objetivo. Pior ainda, cria sua própria religião, que é expressão social do seu espírito idolátrico.
Sem uma compreensão crítica da modernidade e, portanto, também dos equívocos ou insuficiência das críticas pós-modernas e da própria noção de pós-modernidade, não podemos repensar a relação entre teologias críticas e teorias sociais críticas e fazer uma crítica teórica séria da idolatria do mercado.
Tarefas do Cristianismo de Libertação (III): crítica da lógica sacrificial
No primeiro artigo desta série eu afirmei que o Império global hoje domina por sedução e que os sacrifícios religiosos continuam sendo oferecidos aos deuses, só que o deus de hoje é uma força impessoal (o sistema de mercado global) que domina as nossas vidas cotidianas e impõe sacrifícios de vidas dos mais pobres. No segundo, eu expus a tese de que é preciso superar a imagem da modernidade pintada pelo próprio mundo ocidental moderno e repensá-la, não como centrada na razão e emancipação, mas como racionalidade a serviço da irracionalidade da acumulação de capital à custa de escravidão, colonização e genocídios; emancipação construída sobre exploração de outros povos.
Neste terceiro, eu quero aprofundar o tema da lógica sacrificial. Para entender a importância deste tema, precisamos nos lembrar que nós vemos, analisamos e julgamos a vida pessoal, social e a dinâmica da sociedade através do que Hinkelammert chama de "marco categorial”, isto é, um conjunto de categorias articuladas por uma determinada lógica. E um das categorias fundamentais do Ocidente tem sido a de "sacrifício”.
Sacrifício (ato sagrado), no sentido mais primitivo, é uma oferenda – geralmente a vida de uma pessoa ou animal – que um sacerdote (pessoa sagrada) oferece a Deus, cumprindo com a exigência divina em troca de um benefício ou da suspensão de algum castigo. Nas teologias sacrificiais, Deus ou deuses são sempre exigentes, não dão nada de graça e nem perdoam. O não cumprimento das suas leis produz uma grande desgraça, por isso o contínuo oferecimento de sacrifícios para evitar a ira divina.
O segredo é a aceitação de um pequeno mal – como sacrificar a vida de alguém ou aceitar algum sofrimento na vida pessoal – para conseguir um bem maior. Assim, na lógica sacrificial, a imposição de sofrimento ou morte sobre alguns se transformam no bem. Isto é, a lógica sacrificial inverte o mal em um bem! É uma completa inversão de valores humanos-éticos em nome de deus, ou, segundo a crítica bíblica, em nome do ídolo.
Esta é a razão pela qual Jesus, retomando uma afirmação de Oséias, acusa o sistema social e religioso do seu tempo de não ter entendido que Deus quer misericórdia e não o sacrifício!
Infelizmente a cristandade – o cristianismo que se alia ao império – retomou a teologia sacrificial e assim reforçou a lógica sacrificial dominante nos impérios. Quando a sociedade crê que deus não pode salvar sem exigir sacrifícios, até mesmo do seu próprio filho amado, é claro que vai aceitar como "natural” o discurso do sistema de mercado capitalista quando fala dos sacrifícios necessários exigidos pelo mercado. Assim como aceitou a escravidão e exploração colonial como sacrifícios necessários para o progresso e, também, para a salvação da alma desses sacrificados.
Sem uma crítica radical à lógica sacrificial presente no inconsciente coletivo ou no fundo das nossas culturas, a crítica radical ao sistema de mercado global não será eficaz. Para isso, é preciso começar com uma afirmação teológica básica: Deus não quer sacrifícios, mas sim misericórdia e justiça para os pobres e oprimidos! Esta é uma tarefa que a teologia e o cristianismo de libertação precisam assumir.
E a morte de Jesus na cruz? Jesus e os evangelhos não interpretaram a cruz como uma exigência sacrificial de Deus que deveria ser aceita. Pelo contrário, Jesus afirmou que ele dava a sua vida livremente, não como obediência uma exigência da lei divina. Isto é "dom de si”, doar a sua vida na luta pela vida dos mais fracos. Pedro, no primeiro discurso após pentecoste diz claramente que o Templo matou Jesus e Deus ressuscitou. A ação de Deus não está presente na crucificação, pois não era sua vontade, mas só na ressurreição para mostrar o erro da lógica sacrificial.
Os sacrifícios exigidos e aceitos só se justificam através do cumprimento das promessas da recompensa. Quando isto não ocorre, foi um sacrifício em vão e os sacrificadores não são mais vistos como sacerdotes, mas como assassinos. É por isso que os "sacerdotes” do Império dizem que a razão do não cumprimento das promessas do mercado para o mundo todo é que ainda faltam mais sacrifícios. Se reconhecessem que estão impondo sacrifícios em vão, eles se perceberiam como assassinos.
Por outro lado, quem doa sua vida pela vida do seu próximo, não faz por obediência a uma lei divina, mas livremente, deixando-se levar pela força interna da compaixão e do amor-solidário. Por isso, quem luta livremente por amor ao próximo, mesmo que não logre o objetivo político-social, não sente como se tivesse feito um sacrifício em vão. Sabe que a luta valeu por ela mesma, porque foi expressão da sua liberdade e solidariedade e assim se tornou mais livre e mais humano.
Tarefas do Cristianismo de Libertação (IV): a metáfora do Êxodo
Nos três primeiros artigos desta série, eu coloquei o foco mais sobre alguns aspectos do capitalismo global que o cristianismo e teologia da libertação precisam levar em conta. Neste quarto, eu quero propor algumas reflexões sobre um aspecto interno do cristianismo de libertação (CL) que pode provocar estranhamento em alguns leitores. Mas penso que é preciso correr risco de ser mal entendido e criticado.
Eu penso que a principal metáfora que norteou reflexões e ações do CL foi e, em muitos lugares continua sendo, a do Êxodo. É claro que Êxodo tem um fundamento histórico, mas a imagem da passagem da escravidão para a terra da liberdade "onde corre leite e mel”, foi usado como metáfora que oferece a estrutura de fundo para ações e pensamentos mais imediato e até para reflexões teóricas.
Para perceber melhor a importância da discussão sobre metáforas, é preciso lembrar que o pensamento humano é construído com o uso de metáforas. Sempre que precisamos fazer uma síntese ou oferecer uma visão global, utilizamos uma figura de um outro campo ou área como instrumento. Por ex., quando alguém diz que o mercado evoluiu como a natureza ou que o universo funciona como um relógio está se utilizando de metáforas. Este "como” mostra isso. E a escolha adequada de metáforas é importante porque elas influenciam e, de certa forma, direcionam o modo de pensar e de viver.
Contra uma teologia que colocava toda atenção no "sair do mundo em direção ao céu”, negando o valor da história humana, a TL deu uma grande contribuição chamando atenção para a o fato de que a missão do cristianismo se dá no interior da história humana. E para isso apresentou a metáfora do Êxodo como modelo fundamental do pensar e agir: a passagem da opressão para o Reino de Deus. Nas palavras de L. Boff, na década de 1970: que "'por um lado, a libertação é concebida como superação de toda escravidão; por outro, como vocação a ser homens novos, criadores de um mundo novo'."
A metáfora do Êxodo pressupõe que na "Terra prometida” não haverá nada que lembre a escravidão e será completamente novo, até com novo homem e nova mulher. Em termos de hoje, na nova sociedade que devemos construir não haverá e nem deverá haver nada que nos lembre do tempo da exploração e opressão, o mercado. Como a marca da opressão hoje é o sistema de mercado global, na nova sociedade não deveria haver nada de mercado, nada que nos lembre do capitalismo. Esta forma de pensar, muitas vezes inconsciente, leva alguns, por ex, a criticar de forma radical os governos Lula e Dilma, mesmo sendo ou tendo sido petistas porque eles, apesar de avanços na área social, não acabaram com o mercado. E se eles não lutam radicalmente contra o mercado estão fora do paradigma do Êxodo. É quase como "tudo ou nada”.
É interessante notar que no NT essa metáfora perde espaço. A história do povo de Israel e a situação histórica levam, por ex, a Jesusa optar por outras metáforas. Na imagem do "sal da terra”, por ex, o caminho não é de saída da opressão para liberdade, mas de imersão no mundo para modificá-lo a partir de dentro, aproveitando e interagindo com o que o mundo tem. Paulo de Tarso também opta por uma "estratégia” de missão que privilegia a criação de comunidades no interior do Império para modificá-lo desde dentro. Na minha juventude eu taxaria essas propostas de reformistas, mas hoje eu penso que a clássica divisão entre pastoral assistencialista, reformista e libertadora precisa ser repensada. (Eu analisei as questões dos dois últimos parágrafos com mais detalhes, e não de forma tão "bruta” como aqui, no livro "Deus em nós: o reinado que acontece no amor-solidário com os pobres”, co-autoria com H. Assmann).
A mudança de metáfora não é simplesmente escolha de uma outra imagem, mas pressupõe uma nova visão da realidade e das possibilidades históricas. "Sal da terra e luz do mundo” revela uma nova opção "estratégica” em relação ao êxodo. É claro que Jesus e o NT oferecem outros tipos de metáforas, mas estou propondo essas reflexões como provocação para repensarmos seriamente a metáfora do êxodo. Porque por mais que desejemos um mundo sem relações mercantis e mercado – que sempre provocam distorções sociais –, não é possível construir outra sociedade viável sem mercado e algumas outras instituições que existem no capitalismo. Vários delas existiam antes do capitalismo e vão (ou podem existir) após a sua superação.
Em uma situação como a nossa, a de Império Global (extremamente amplo e complexo), talvez seja interessante aprofundar a discussão sobre o uso de outras metáforas, como a do "sal da terra e luz do mundo” para nossas ações e reflexões.
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