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terça-feira, 25 de março de 2014

Fé e economia - Sonho tridimensional

Por Alex Zanotelli 




Todos nós fazemos parte do sonho de Deus. Somos mesmo chamados a realizá-lo aqui e agora: desmascarando o império do dinheiro, dando outro rumo à política, renovando a Igreja, fazendo comunidade e vivendo sobriamente.


Neste ano jubilar, Deus sonha com um mundo diferente. Será possível pensarmos num Deus indiferente diante de situações absurdas como a Korogocho, nos subúrbios de Mairobi, onde milhares de pessoas vivem amontoadas, privadas de tudo, ameaçadas pela sida, enquanto a menos de três quilómetros deparamos com as vivendas dos ricos? Sentimo-nos mal. Como é possível viver em mundos tão diferentes?


Para respondermos a estas perguntas é preciso interrogarmo-nos: o que é o jubileu? Muitos estudiosos afirmam que o jubileu chega tardiamente à Bíblia. Não é verdade. É tardio o texto do Levítico (cap. 25). Escrito depois do exílio do povo de Israel. Hoje, toda a investigação bíblica – uma investigação espectacular, sobretudo americana e alemã, nos últimos 15 anos – considera o nascimento de Israel como uma autêntica revolução religiosa. E o jubileu é o centro dessa revolução. O jubileu nasceu quando rebentou a revolução em Israel.
Um dos mais conhecidos biblistas americanos, Walter Brueggemann, no seu livro The Prophetic Imagination, resume em três proposições o sentido do sonho de Deus acerca da humanidade.


* Deus sonha para o seu povo uma economia de igualdade: significa que os bens deste mundo têm de servir a maioria das pessoas e não uma minoria. A economia encontra-se em primeiro lugar (e aqui temos de dar razão a Marx por ter entendido isto), porque o primado do problema económico é fulgurante.


* Para se obter isso, porém, é preciso uma política de justiça, isto é, um tipo de política que se oponha à tendência das comunidades humanas em se estruturarem na desigualdade. E aqui Marx errou: o homem não é mau porque a sociedade o torna mau; a maldade encontra-se dentro do homem, faz parte do homem.


* Mas para se obter uma política de justiça é preciso haver um povo que realize umaexperiência religiosa onde Deus seja livre. (Hoje o homem é um animal económico, político, religioso; agnosticismo, ateísmo são disparates, todos os homens são religiosos.) Um Deus que, sendo livre (Javé é a recusa em atribuir-se um nome), não é o Deus do sistema, mas o Deus das vítimas de cada sistema, o Deus dos oprimidos, das viúvas, dos órfãos, de quem não conta. É aqui que se encontra o essencial do sonho de Deus.

Diante do império

Este sonho é confiado a Moisés, que é um egípcio, criado no palácio. Não sabemos como é que deu conta que tinha sangue hebreu, mas a certa altura apercebeu-se de que os seus irmãos estavam a sofrer. Talvez tenha tentado fazer alguma coisa e teve de fugir. No deserto encontrou uma belíssima moça, com quem teve três filhos. Algumas cabras e ovelhas e a sua vida parecia estar realizada. É o que quase todos fazermos: casamos, e acomodamo-nos a uma vida tranquila – «não conseguimos mudar o mundo» – e assim fez Moisés.
Mas Javé não esteve pelos ajustes. Perguntou-lhe: «Que fazes aqui? Vai.» «Ter com quem?», inquiriu Moisés. «Com o faraó.» É como se hoje Deus dissesse a um de nós: «Vai ter com Clinton.» A incumbência é árdua, mas Moisés vai. E que encontra? O império. Que, como qualquer império – faraónico, babilónio, romano, o actual império do dinheiro –, é o oposto do sonho de Deus.

Todos os impérios assentam na economia da opulência: poucos possuem tudo. («O que é o Reino de Deus?», perguntei um dia, durante uma celebração, a uma velhinha que vive ao lado da lixeira de Korogocho. «Caro Alex – respondeu –, o Reino de Deus é matar a fome, é comer.» E é verdade: a primeira coisa que Deus pretende é que cada um de nós tenha com que viver em dignidade.)

No Egipto havia dez por cento da população a viver na abundância à custa de tanta gente a morrer de fome. Em Roma, a mesma proporção: a realidade imperial é esta. Para se conseguir uma economia da opulência é necessária uma política de opressão. Não há escapatória, em todos os impérios há um regime opressor para conseguir controlar os pobres. Ainda hoje as armas fazem parte integrante do sistema: todos os anos se gastam somas astronómicas em armamentos. Hoje o império conseguiu alargar os benefícios a 20 por cento da população mundial, mas os mecanismos que o sustentam não mudaram. Pelo contrário, as condições estão a piorar cada vez mais para quem nada tem.

Uma economia de opulência exige uma política de opressão, que, por sua vez, necessita de uma religião onde Deus se torna prisioneiro do sistema. Deus abençoa o faraó; abençoa César; abençoa Clinton. Religião imperial. E a religião imperial replica: de que vos queixais? Nunca tiveram nada de bom! Obedeçam, fiquem quietos, ireis para o Céu!


Êxodo é isto: a proclamação que Deus escutou o clamor das vítimas e venceu o faraó, que Deus desbaratou o mal, que há esperança na história humana, que há futuro.

Sistema de pecado

Como nós homens tendemos a constituir-nos em sociedade desiguais, Deus propõe-nos o jubileu como instituição legal para nos ajudar a dar este passo enorme: sair da desigualdade.
É um facto que Israel fez depois uma experiência muito forte no deserto, teve de purificar a sua fé, compreender quem realmente é este Deus. Outras tribos se juntaram à dos levitas (que havia sido prisioneira no Egipto e que conservou a fé em Javé) e juntas tentaram prosseguir uma economia de igualdade (dividindo as terras). E foi precisa uma política de justiça.


Para Israel esta experiência foi muito difícil, tentou viver segundo o sonho de Deus, mas correu-lhe mal. Com a monarquia, com Salomão, regressa-se ao império: poucos ricos, opressão (exército). Salomão constrói o templo para poder dizer ao Senhor: aqui estou. Mas Javé já lá não estava, estava lá fora com os pobres, com os escravos, com os deserdados.


Surgem então os profetas a criticar Israel por ter traído o sonho de Deus. Os profetas são a campainha de alarme. Jesus relança o sonho na Galileia oprimida pelo brutal imperialismo de Roma. Jesus proclama, segundo lemos no Evangelho de Lucas, o ano de graça: é o jubileu. Lança-o formando pequenas comunidades de resistência, onde tenta realmente fraccionar o pão, isto é, partilhar, acolher os pobres, os excluídos, os leprosos. E renasce a esperança de que Jesus conduzirá a Jerusalém, para os contestar, os poderes constituídos. Que vêem nele uma ameaça, matando-o fora das muralhas. A morte de Jesus é uma morte política: a crucificação era reservada aos escravos, aos não romanos, aos desestabilizadores. Jesus morre como um cão abandonado, mas eis que surge a proclamação estupenda: Deus, Papá como ele o chamava, mantém-se fiel àquele crucificado. Jesus ressuscitou e manteve-se fiel a todos os crucificados da história. É este o jubileu.


Hoje, a diferença entre ricos e pobres – segundo dados do Banco Mundial – é esta: os 20 por cento mais ricos da população mundial detêm, usam e consomem 82,7 por cento dos recursos mundiais. Ao passo que os 20 por cento mais pobres detêm e consomem só 1,4 por cento dos bens deste mundo: mil milhões e meio de pessoas vivem com menos de um dólar (duzentos e poucos escudos) por dia. E a situação para os pobres tenderá a piorar ainda mais.


Celebrar o jubileu significa pôr em causa um sistema que cria cada vez mais mortos, cada vez mais fome. Cerca de 30 milhões de mortos de fome por ano, sacrificados às lógicas do mercado livre: é um sistema de pecado.

Que conversão?

O jubileu incita-nos à conversão pessoal, que tem de ser também conversão política e económica. E não me digam que nada podemos fazer.
Podemos, antes de tudo, reapropriar-nos da política, que agora está nos centros do poder económico-financeiro. Temos de encontrar formas alternativas, para que a economia se submeta a decisões tomadas democraticamente. A democracia dos nossos dias é uma burla.

Com o nosso poder de consumidores podemos obrigar as empresas a mudar, fazendo com que elas respeitem o trabalho e o ambiente, se tornem transparentes, que não explorem as crianças. Podemos fazer isso com um consumo crítico, pontual e severo: quando vamos fazer compras nos supermercados – os novos santuários –, estamos a votar.


Mas o consumo crítico não basta: temos de redimensionar o nosso estilo de vida no sentido da sobriedade, temos de aprender a viver mais simplesmente. É duro e difícil dizer isto, mas não há outra alternativa. Digo aos jovens: arregacem as mangas, porque sois a última geração que se pode bater para que ainda haja futuro.


É claro que tarefas desta natureza não podem ser enfrentadas individualmente. Há que formar comunidades de resistência. Estou a pensar, por exemplo, na Rede Lilliput: é importante, sobretudo se estiver implantada no local, se congregar associações e grupos interessados em criar alternativas nessas localidades. E, através das novas tecnologias informáticas, é possível manter-se ligados às lutas do Sul do mundo, fornecer informações denunciando as injustiças, organizar campanhas de boicotagem...


Depois temos de ajudar a Igreja a mudar. Como podemos celebrar jubileus num contexto destes? A própria Igreja, as igrejas, a religião encontram-se cada vez mais ao serviço do império. A Igreja tem de ter a coragem de dizer a verdade acerca do sistema; tem de conjugar fé e economia; tem de pôr em evidência a não-violência activa, que não foi inventada por Gandhi, mas por Jesus.



O jubileu de 2050 terá de ser realmente o jubileu mundial, em que todos possam sentar-se modestamente ao banquete da vida, ou não haverá mais futuro para este mundo. É o grande desafio que eu deixo aos jovens: deixai de ser espectadores passivos. Partindo do jubileu deste ano – que para mim ainda se identifica demasiado com o sistema –, ponhamo-nos a caminho para que a vida possa realmente vencer.

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