UMA NOVA CIDADE SOBRE O MONTE
Mt 5 - 7
Marcos Monteiro*
"Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte" Mt 5,14.
Estranho discurso de estranho projeto narrado para estranhos ouvintes. Para proferi-lo, Jesus sobe pacientemente um monte. Não mais o monte da conquista do mundo para onde o diabo o transportara subitamente, mas o monte do aprendizado vagaroso e continuado sobre o novo mundo, o Reino de Deus. O evangelho de Mateus gosta de organizar as coisas e os textos organizados como "Sermão do Monte" coletam o melhor do ensino que existia na comunidade como ensino de Jesus.
Uma casa precisa ser edificada sobre a rocha e uma cidade, conjunto organizado de casas, precisa ser edificada sobre o monte. Esse empreendimento será realizado novamente não pelos grandes e poderosos, mas pelos pequenos e proscritos. Esses é que são a luz do mundo e o sal da terra, estão bem mais próximos dos novos valores do Reino, e o material de construção não são novas idéias abstratas, mas ações práticas. Quem ouve e pratica as palavras ouvidas são aqueles que entendem realmente de construção, os trabalhadores comuns e os que usam os instrumentos do cotidiano de forma construtiva, nunca aqueles que gritam ordens e usam os instrumentos para matar. A ética do Reino está mais próxima da ética do cotidiano do que da ética do palácio, do templo e da sinagoga.
O avesso da felicidade:os bem-aventurados da nova cidade - Mt 5,1-16
A nova sociedade da nova cidade é formada por aqueles que desde a velha cidade conhecem a pobreza, a carência, a fome, a injustiça, a discriminação, e a opressão. Esses é que são felizes no Reino de Deus, não pela sua carência e sofrimento, mas porque estes atestam as suas atitudes práticas e suas escolhas fundamentais. Deus lhes dá e lhes dará a sua graça e bênção porque a sua pobreza, choro, silêncio, fome foram acompanhados de atitudes concretas de luta pela paz, de atitudes misericordiosas, de vontade incorruptível, assumindo todos os riscos por amor à justiça e por amor a Jesus. Não compactuaram com os valores da velha sociedade e, por causa disso, conhecem mais do que ninguém o caráter do Reino e o caráter de Deus.
Ser feliz é construir a contracultura da solidariedade e da luta visceral por um mundo mais amoroso e mais justo e não participar dos interesses e vantagens da sociedade da morte e da perseguição. Essa contracultura, nesse mundo cindido entre ricos e pobres, está mais próxima da vivência dos pobres, entre os quais Jesus e seus discípulos se incluem, do que da sociedade da opulência, da lisonja e da opressão. Essa alegria já pode ser desfrutada agora, enquanto sinal e semente, mas será plena na plenitude do Reino de Deus. Extrair alegria do pouco, exultar e alegrar-se a partir de pequenos gestos e pequenas lutas é típico do povo pobre que, nas situações-limite em que vivem, sabem muitas vezes encontrar o cerne da vida enquanto nos perdemos em confusões sem fim.
O avesso da lei:as raízes dos mandamentos - Mt 5,17- 5,48
Na nova cidade, a lei e os mandamentos devem ser tratados de modo radical, ou seja, pela raiz, excedendo assim a lei dos escribas e fariseus.
Essa radicalidade procura a atitude que antecede o ato e que redunda no ato, mas que já é crime desde então. O discurso de morte e a palavra ferina já são em si assassinatos, a atitude androcêntrica que transforma a mulher em mero objeto sexual já é adultério, o juramento em si é maligno. A palavra, o olhar e as mãos que se estendem em atitude ritual tornam-se fonte do mal. Na nova sociedade é preciso uma nova palavra, um novo olhar e um novo toque pelas mãos.
Radicalidade igualmente no amor, o qual se torna arma de resistência, usada estrategicamente por Gândhi e por Martin Luther King Jr em suas lutas contra a colonização e o racismo, respectivamente. Somente oferece a outra face aquele que não se dobra diante da opressão e insiste na sua posição, por amor. Amor inclusive ao opressor inimigo. Como forma de luta, o amor, dizia Martin Luther King Jr, "é a única força capaz de vencer o inimigo porque transforma o inimigo em amigo". Amar o inimigo não pode ser compactuar com ele nem lhe permitir a opressão, mas livrá-lo exatamente do prazer e da oportunidade de oprimir, os quais lhe diminuem enquanto ser humano.
O avesso da justiça:a ética da incompletude - Mt 6,1 - 7,5
A justiça já havia sido tratada anteriormente como carência ontológica que me impulsiona a buscas profundas, que só podem ser realizadas em segredo e em solidão. A partilha (a esmola) deve vir de solidariedade natural e não de desejo de publicidade. A oração deve ser realizada no silêncio do quarto, na procura de um Pai que é nosso e que nos chama a repartir um pão também nosso. O jejum é relação profunda com o próprio corpo que deve acontecer diante de Deus e não diante dos homens.
Meu sentimento de carência de justiça não me permite viver o projeto de acumulação dos ricos, nem mesmo priorizar o meu sustento elementar, comida e roupa, mas investir intensamente na construção do Reino, na busca do Reino em primeiro lugar. No governo de Deus, no Reino, os passarinhos sempre têm o que comer e as flores o que vestir, portanto, também os seres humanos, filhos do Pai e imagem de Deus, terão o mesmo cuidado.
Como carente de justiça, tenho o sentimento de carregar uma trave no meu olho que distorce o meu olhar perante o argueiro do meu irmão. O único modo de ajudar o meu irmão não é julgando-o, mas convidando-o a me ajudar a tirar a trave do meu olho para eu poder enxergar melhor o seu argueiro. Em outras palavras, não posso curar o meu irmão, não sou juiz do meu irmão, o máximo que posso fazer é entrar em uma relação mútua de cura, onde sempre sou o maior beneficiado.
O avesso da autoridade:a dinâmica da vida - Mt 7,6-29
As multidões, diante de Jesus, se percebem diante de um novo tipo de autoridade, diferente da dos escribas e dos fariseus.
Primeiro, autoridade que vinha da vida intensamente vivida. Conhecia muito bem a vida, especialmente a vida do pobre que era o tipo de vida que vivera. Muitos dos seus exemplos lembra o cotidiano dos pobres. Essa vida, os poderosos, bem como os escribas e fariseus, não podiam conhecer. Não vivia um conceito de vida, mas uma prática de vida. Podia desafiar a todos a uma realização prática, porque ele mesmo assumira a práxis do Reino em cada gesto e em cada ação.
Depois, era uma autoridade que vinha da intimidade com o Pai. Deus não era para Jesus um conceito ou uma realidade teológica, mas experiência mística de acolhimento e companhia de um Pai, que podia carinhosamente ser tratado como ABBA. Pai a quem se pode pedir com insistência e confiança.
Por último, essa autoridade vinha de uma visão de Reino de Deus, típica de sua consciência profética e apocalíptica. A partir dessa consciência, podia ensinar e desafiar os seus ouvintes a serem prudentes, não atirando pérolas aos porcos, a entrarem pela porta estreita, a examinarem e rejeitarem os falsos profetas, e a testarem cada um dos seus ensinos através da prática. Ouvir e praticar é construir na rocha as casas da nova cidade edificada sobre o monte.
Feira de Santana, 17 de setembro de 2008
*Marcos Monteiro é um dos pastores da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA e faz parte do colégio pastoral da Primeira Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE. Mestre em Filosofia, é assessor de pesquisa do CEPESC, vice-presidente do Centro de Ética Social Martin Luther King e coordenador do Portal da Vida. COMUNIDADE DE JESUS – Blog: www.comunidade.dejesus.zip.net CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail
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