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quinta-feira, 21 de maio de 2009

Espiritualidade e deserto

ESPIRITUALIDADE E DESERTO

Mt 3,13 – 4,25

Marcos Monteiro*

“A seguir, foi Jesus levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo” Mt 4,1.

Impelido do mergulho no Jordão para as areias do deserto, como nas antigas e sempre lembradas histórias do Êxodo, o carpinteiro de Nazaré experimenta a espiritualidade em seus cumes e vales. A comunidade que escreve o texto de Mateus nos adverte que vivemos a experiência do Espírito entre o Jordão e o deserto, entre a voz do céu e a disputa verbal com Satanás.
Estranho deserto esse, em que se passeia por templos e montes tão altos que se enxerga ali os reinos do mundo. Essa inobjetividade geográfica nos aponta certamente para as interioridades místicas, para os desertos do coração e das decisões radicais. Precisa-se, diante dos desafios da missão, buscar a clareza do significado do Reino de Deus, avançando no deserto do jejum radical, participando dolorosamente da fome somática e existencial do povo.

O deserto dos significados:o que o Reino não é (Mt 4,1-11)

Na espiritualidade do deserto, em fome, fraqueza e tentação, há uma busca inútil de significados, em que os sentidos não se encontram disponíveis. A tentação também é hermenêutica e os textos sagrados assumem caráter diabólico em alguns momentos, podendo ser usados como pretexto não para a missão mas para a legitimação sagrada do poder.
A missão, em primeiro lugar, não pode ser a repetição do milagre do pão no deserto (Mt 4,4), como a legitimar o projeto legalista e farisaico dos escribas. O Reino não pode ser a multiplicação de tribunais e sinagogas, baseados na aplicação da Torá, e o messias não é um legislador ou um novo juiz a julgar toda a humanidade transformada, em um proselitismo uniforme, em tribos de Israel.
Mas também o Reino não é a legitimação do templo (Mt 4,5-7) e do seu projeto sacerdotal e sacrificial, em que homens e animais são verdadeiramente sacrificados aos projetos de opressão e exploração, capitaneados pelos sacerdotes, estes cooptados pelo sistema imperial. O messias não é uma espécie de sumo-sacerdote, vigilante das tradições litúrgicas, sempre pronto a colocar o povo a serviço de um sistema cúltico-sacramental que mascara um sistema político-econômico detrator.
Por último, o Reino não pode ser a manutenção do poder romano em nova forma (Mt 4,8-10), como a zelote, por exemplo. O messias não pode ser um imperador que assume um projeto hierárquico de domínio sobre povos e nações, embora em nome de Deus. E assim, esgotam-se os significados disponíveis e a pergunta terá de ser respondida em outro momento e outro lugar.

Da areia do deserto para a areia da praia:líderes para o Reino (Mt 4,12-22)

Se a pergunta não pôde ser respondida em Jerusalém, a qual mata profetas e acaba de prender João Batista, é preciso voltar para a Galiléia e saindo das areias do deserto, caminhar pela areia da praia, sempre à procura.
E as primeiras respostas vem dos pescadores, o Reino precisa de homens afeitos ao trabalho braçal, capazes de pescar outros homens. O Reino tem uma dimensão mais humana que estrutural e a liderança deve ser procurada entre pessoas humanas concretas, acostumadas com a vida em sua complexidade cotidiana, e não entre rótulos e títulos. Os líderes do Reino são trabalhadores comuns, não pertencem nem à elite política, nem à elite econômica, nem à elite religiosa e nem à elite intelectual. O Reino de Deus só pode surgir na periferia, à beira-mar da história.

Os caminhos dos significados:o que o Reino está sendo (Mt 4,23-25)

As perguntas são lançadas no deserto, mas as respostas só podem ser formuladas nos caminhos. As respostas não são fixas, não há fórmulas prontas, elas só podem ir sendo elaboradas pouco a pouco, na prática do dia-a-dia, na interação contínua com as populações famintas.
Jesus e o seu grupo de seguidores, pessoas do povo, vão em direção ao povo e são procurados pelo povo. Estão em todos os lugares, em todas as aldeias e cidades, em todos os caminhos. Vão às sinagogas, lugares fechados, e às praias, lugares abertos, ensinando, curando e pregando.
Em vez do projeto legalista dos fariseus, o projeto pedagógico próprio, através de parábolas e palavras da vida cotidiana. Em vez do projeto sacrificial dos sacerdotes, o projeto terapêutico, mãos que tocam e que curam os excluídos em vez de sacrificá-los. Em vez do evangelho de Roma, o evangelho do Reino de Deus, em vez do amor ao poder, o poder do amor.
É preciso sempre lembrar que a palavra “evangelho” era uma palavra política. Roma usava essa palavra para anunciar os feitos poderosos, pretensamente libertadores, do Império Romano. Jesus e seus discípulos anunciavam, pregavam, um novo evangelho: os atos amorosos que Deus estava realizando. Deus estava agindo como um pedagogo, como aquele que leva uma criança pela mão para lhe ensinar uma nova maneira de ser; Deus estava agindo como um taumaturgo, fazendo milagres que curavam os enfermos e restauravam a sua cidadania; e Deus estava acima de tudo sendo aquele que servia, aquele que se colocava à disposição dos proscritos e marginalizados da sociedade para lhes dar uma nova condição de vida, plena de amor e liberdade.

Feira de Santana, 08 de setembro de 2008

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