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sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Os dez mandamentos: os pobres

Jung Mo Sung

Quando falamos da preocupação que quase todos os setores do cristianismo dizem ter com os pobres, precisamos ter claro que nem todos estão falando da mesma coisa. Eu penso que, neste assunto, pelo menos três pontos diferenciam o cristianismo de libertação de outras formas de conceber e viver o cristianismo.
A primeira diferença se dá na compreensão do problema da pobreza. Para o cristianismo de libertação, a pobreza não é uma questão meramente pessoal ou conjuntural, mas é um problema estrutural, resultado da própria estrutura econômico-social na qual vivemos. Por isso, luta em duas frentes: a) na promoção de reformas econômicas e no avanço de políticas sociais visando promover melhorias na vida dos pobres no interior do atual sistema econômico; (b) nas lutas políticas e sociais em âmbitos regional, nacional e mundial visando mudanças significativas na estrutura do atual sistema capitalista global. Pois crê que sem estas mudanças estruturais não é possível a superação da atual situação de gritante exclusão social de uma grande parcela da população mundial.
A segunda diferença se dá na compreensão do papel dos pobres. Há setores importantes do cristianismo preocupados com o problema da pobreza que vêem os pobres apenas como beneficiários passivos, objetos da ação por parte das Igrejas e dos cristãos. Cristianismo de libertação, por sua vez, se soma àqueles grupos que vêem os pobres como sujeitos participantes da mesma luta. Nesta caminhada não deve haver "nós" e "eles (os pobres)", mas sim um único e mesmo espírito que nos move todos juntos em busca da liberdade e libertação. O que está em jogo não é somente um problema econômico-material, mas também a afirmação da dignidade humana deles e de todas as pessoas que se juntam solidariamente à luta. É na experiência de assumir e fazer parte desta luta que a dignidade humana é afirmada e podemos experienciar a presença do Espírito do Ressuscitado entre nós.
A terceira diferença se dá na relação entre a fé cristã e a preocupação ou luta social. Para muitos, a ação social é ou deve ser uma aplicação da fé e das doutrinas religiosas no campo social. Neste sentido, seria recomendável que todas pessoas cristãs tivessem também uma preocupação com os pobres, mas esta seria uma questão secundária, uma aplicação. O mais importante, o essencial, seria a adesão pessoal à pessoa de Jesus Cristo. Além da separação entre os âmbitos pessoal e o social, haveria também uma distinção entre a fé-espiritualidade e o compromisso social. Para o cristianismo de libertação, esta separação entre o pessoal e o social não se sustenta, assim como não é possível realmente aderir pessoalmente à pessoa de Jesus Cristo (a fé) sem ao mesmo tempo assumir uma postura social em favor dos pobres. A opção pessoal pela defesa da vida dos pobres não é uma mera aplicação facultativa da fé, mas uma parte essencial dela.
Para desenvolver melhor esta idéia, quero comentar aqui rapidamente um dos pilares da tradição bíblica e do próprio cristianismo, os dez mandamentos. Eu vou tomar a versão do livro de Deuteronômio (Dt 5, 6-21), na forma organizada pela Igreja Católica. (No próximo artigo, eu vou complementar a reflexão comentando uma passagem do Atos dos Apóstolos)
Eu penso que o coração do decálogo está no 5º. Mandamento (na tradição protestante, o 6º.): "Não matarás!". Deus faz a Aliança com o seu povo para que este defenda a vida - o dom que recebemos de Deus desde o início da criação - contra as forças da morte que oprimem o povo e nega o direito à vida. Para que a defesa da vida seja concreta, o decálogo nos apresenta outros dois mandamentos como uma primeira proteção: "Honra teu pai e tua mãe" (4º.) e "Não cometerás adultério" (6º.). Estes dois mandamentos se referem à família, o primeiro e o fundamental ambiente onde a vida floresce. O filho forte e produtivo deve honrar e cuidar dos seus pais mesmo na velhice, pois a força não pode ser um critério que sobrepõe às relações humanas e sociais éticas. Assim como o compromisso com o cônjuge - com o qual se inicia a família - não pode ser negado por puro instinto ou desejo sexual que não quer reconhecer limites.
Entretanto, a vida não pode ser defendida pela família se as condições econômicas e sociais não lhe permitem. Por isso, os dois mandamentos sobre a família, que "abraçam" a defesa da vida, vêm abraçados por outros dois que defendem os seus direitos trabalhistas e sociais: "Guardarás o dia de sábado (...) Não farás nenhum trabalho (...) nem teu escravo, nem tua escrava (...) Recorda que foste escravo no Egito (...)" (3º.) e "Não roubarás" (7º.) Uma família não pode sobreviver somente com amor e honra, mas é preciso que os frutos do seu trabalho não lhes sejam roubados pelos mais fortes e poderosos, e que tenha o direito ao trabalho e ao descanso.
O problema é que o povo de Israel - como nós - já vive em uma situação em que se explora os direitos dos trabalhadores e dos pobres. Como estes não têm força bruta para reagir contra os poderosos, só lhes resta ir ao tribunal reclamar os seus direitos. Porém, os poderosos de todas as épocas costumam comprar falsos testemunhos e manipular doutrinas religiosas para esconder e legitimar os seus pecados e crimes. Por isso, os mandamentos dos direitos dos trabalhadores vêm abraçados por dois outros: "Não pronunciarás em vão o nome de Deus" (2º.) e "não dará falso testemunho contra o teu próximo" (8º.)
Mas por que as pessoas são capazes de tanta maldade e mentira para acumular mais do que precisam? É porque as pessoas não buscam o que necessitam, mas o que desejam, o que cobiçam. Por isso, o decálogo diz ao final "Não cobiçarás a mulher do teu próximo; nem desejarás para ti a casa do teu próximo, nem o seu campo ..." (9º e 10º.) Nós somos seres que desejamos possuir o que é do outro, para isso somos capazes de explorar, roubar, mentir, adulterar e matar. Para mudar isto é preciso uma conversão espiritual no mais fundo do nosso ser. Esta é a razão porque o outro mandamento que possibilita o "abraço" é: "Eu sou Iahweh teu Deus, aquele que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim" (1º).
Para o cristianismo de libertação, não há separação entre a espiritualidade, a defesa da família, a luta pelos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores e dos pobres, a afirmação da verdade e a luta contra a idolatria e manipulação religiosa. Afinal, não podemos viver a nossa fé sem defender a vida, o maior dom que recebemos, sem lutar em todos os campos que de modo interligados e interdependentes afetam as nossas vidas.

Um comentário:

  1. Gostei muito do artigo. Legal a visão do autor sobre o acúmulo de riquezas. Abraço.

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