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sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Socialismo cubano e a igualdade

Jung Mo Sung *

Na conclusão da primeira sessão ordinária da Assembléia Nacional de Cuba, o general de Exército Raul Castro, o presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros, (essa é a forma como o jornal Granma o apresenta), pronunciou o discurso intitulado "Socialismo significa justiça social e igualdade, mas igualdade não é igualitarismo".
Antes de entrarmos na reflexão propriamente dita sobre alguns pontos desse discurso, precisamos nos lembrar que, quando falamos sobre Cuba e o seu socialismo no meio das esquerdas ou grupos anticapitalistas latino-americanos, sempre há uma mistura do "Cuba-real" com o "Cuba-mito". A visão mítica sobre a revolução e o socialismo cubanos tende a nos levar a subestimar os problemas, dificuldades, equívocos e erros enfrentados e cometidos lá -como ocorre em todos os lugares- e superestimar os seus avanços sociais, que são inquestionáveis.
Essa postura "apologética" é perfeitamente compreensível em debates políticos polarizados entre os pró-capitalistas e pró-socialistas ou anticapitalistas, mas isso não nos ajuda muito na construção de um modelo ou um projeto de sociedade pós-capitalista. Muito pelo contrário, postura apologética -seja política ou religiosa- inibe uma verdadeira consciência crítico-construtiva.
A construção de um projeto ou de uma imaginação de uma outra sociedade é fundamental também para pessoas e grupos que estão enfocando a sua ação e atenção para problemas mais locais e imediatos. Pois não se pode fazer uma crítica real e construtiva da realidade em que vivemos se não possuímos um projeto ou, pelo menos, uma imaginação de uma outra sociedade. É esse modelo ou imaginação que nos dá critérios e bases para as críticas.
Uma das dificuldades que as comunidades e grupos sociais que lutam em favor dos pobres e oprimidos enfrentam hoje é exatamente a ausência de um modelo alternativo de sociedade após a queda do bloco socialista. Essa ausência ou a falta de maior clareza do tipo de sociedade que queremos leva muitos grupos a se focarem somente no local e imediato - perdendo de vista os objetivos a médio e a longo prazo -, ou então a assumirem discursos extremamente vagos e genéricos que não oferecem diretrizes ou pistas de ação no campo macro-social ou político.
Nesse trabalho, que já vem sendo realizado por muitos grupos e redes (Fórum Social Mundial é um exemplo), as experiências históricas e reflexões teóricas em torno do socialismo não podem ser ignoradas. Por tudo isso, eu penso que vale à pena refletirmos, mesmo que rapidamente sobre alguns pontos do discurso de Raúl Castro.
A idéia central do discurso aparece já no seu título e é retomado no meio do discurso quando ele fala do problema do baixo salário dos trabalhadores e da nova Lei de Segurança Social:

"Socialismo significa justiça social e igualdade, mas igualdade de direitos, de oportunidades, não de renda. Igualdade não é igualitarismo. Este, em última instância, é também uma forma de exploração: a do bom trabalhador por aquele que não é, ou pior ainda, por um vagabundo".
Eu não quero entrar aqui em discussão mais técnica ou econômica sobre esse problema do salário e da produtividade e eficiência que Raúl Castro menciona antes dessa afirmação (será tratado no próximo artigo), mas quero chamar atenção para o conceito de "igualdade". Se a igualdade buscada não é a igualdade de renda, mas de direitos e oportunidades, isso significa que, para R. Castro, a desigualdade social ou a desigualdade de renda e riqueza não é incompatível com o socialismo. Mais do que isso, a busca da igualdade de renda se transforma em outra forma de exploração.
Está Raul Castro perdendo sua "radicalidade" revolucionária? É difícil dizer. Mas, eu penso que ele está raciocinando a partir de alguns princípios "realistas". Por exemplo, ele reconhece que vícios como a indisciplina, que reduz a produtividade e eficiência no trabalho, existe entre os quadros e trabalhadores e que "há de estar consciente de que cada aumento de salário que se aprove ou preço que se estabeleça deve corresponder com as possibilidades da economia".
Os seres humanos não são perfeitos e a economia tem suas "leis" que são mais fortes que a vontade humana ou política. O governo cubano reconhece que o salário não é suficiente para satisfazer de modo digno as necessidades da população, mas ao mesmo tempo sabe que não basta aumentar o salário dos trabalhadores ou abaixar os preços da cesta básica por um decreto se a produção não acompanhar essa variação. O que o governo está assumindo é que sem incentivos ou formas de remuneração que gere desigualdade social não é possível aumentar a produção no nível desejado. Por isso, a defesa da igualdade socialista como a igualdade de direito e de oportunidade, e não como "igualitarismo".
É uma visão de socialismo que não é o do "socialismo real" que ruiu, mas pode ser visto como um socialismo "realista".

No artigo anterior, Socialismo cubano e a igualdade, começamos uma reflexão sobre a afirmação feita pelo Raul Castro, no dia 11/07/08, na conclusão da primeira sessão ordinária da Assembléia Nacional de Cuba: "Socialismo significa justiça social e igualdade, mas igualdade de direitos, de oportunidades, não de renda. Igualdade não é igualitarismo. Esse, em última instancia, é também uma forma de exploração: a do bom trabalhador pelo que não é, ou pior ainda pelo vagabundo."
Essa precisão do conceito de igualdade, diferenciando-o do igualitarismo, é resultado não somente de discussões e reflexões filosóficas ou ideológicas, mas também da pressão da realidade econômica e social cubana.
Após a revolução, com mudanças no sistema econômico e alto investimento em programas sociais (na área de educação, saúde, moradia, etc), a expectativa de vida em Cuba aumentou de 59 anos para 77 anos. Com esse grande avanço social, Cuba passou a enfrentar um novo tipo de problema. Agora, as pessoas que se aposentam vivem mais quase 20 anos. Se adicionarmos a isso uns 20 anos de vida antes do ingresso no mundo do trabalho profissional, temos uma situação em que, como diz R. Castro. "durante um período superior aos 40 anos, algo mais da metade da expectativa de vida de um cubano, todos os gastos em que incorrem são assumidos pelos que trabalham". E como o índice de natalidade tem caído em Cuba, esse número de trabalhadores também tem diminuído.
Isso significa que esse modelo só é sustentável na medida em que há um aumento da produtividade no sistema produtivo e um uso eficiente dos recursos econômicos capazes de sustentar o alto gasto do Estado nos programas sociais e o consumo das pessoas abaixo e acima da idade do trabalho profissional. Esse exemplo nos mostra como o avanço social gera novos problemas e pressões no campo econômico.
Para que os trabalhadores possam receber um salário justo, um salário que corresponda ao seu trabalho e que possa propiciar uma vida digna é preciso, segundo R. Castro, que se cumpra as seguintes condições: a) que o trabalho realmente contribua ao que todos depois demandam receber; b) "ordem, controle e rigorosa exigência que assegurem eficiência, poupança e evitem roubos ou desvios de recursos"; c) "eliminar as gratuidades indevidas e o excesso de subsídios" (este para ser um ponto importante e polêmico, pois ele enfatiza o ponto dizendo logo a seguir: "Repito, eliminar as gratuidades indevidas e o excesso de subsídios"; d) "um adequado sistema de impostos e contribuições" para sustentar os serviços gratuitos ou fortemente subsidiados e financiar atividades como a defesa, a segurança e a ordem pública.
Essa lista de condições mostra, na perspectiva do governo, as dificuldades e os problemas que a economia e a sociedade cubana estão enfrentando. A necessidade de "ordem, controle e rigorosa exigência que assegurem eficiência, poupança e evitem os roubos" mostra que há um problema estrutural tanto nos procedimentos quanto na cultura da máquina estatal. Já há tempos a população e o próprio governo vêm falando dessas questões, mas parece que agora isso se tornou uma questão vital. Ineficiência, roubo e desvios de recursos para fins não devidos estão colocando o sistema econômico-social-político cubano em condições extremamente vulneráveis. Tanto que, R. Castro diz: "Agora se impõe mais do que nunca investir nossos limitados recursos com racionalidade, essencialmente na obtenção de utilidades que permitam custear os já elevados gastos sociais do país".
Estamos tratando aqui de problemas estruturais internos ao Cuba, sem falar no já famoso bloqueio comercial imposto pelos Estados Unidos. Em resumo, os problemas estruturais têm origens interna e externa.
Na medida em que o Estado -que controla a maior parte da economia- enfrenta sérios problemas econômicos, uma conseqüência é a necessidade ou a pressão para a eliminação de serviços gratuitos e a diminuição de subsídios -todos financiados pelo Estado. Isso significa na prática um aumento no custo de vida da população, pois ela passa a pagar por serviços antes gratuitos ou a pagar mais por serviços e bens que têm subsídios diminuídos. Aumento no custo de vida gera pressão para o aumento dos salários -que na grande maioria também são controlados pelo Estado. Por isso, R. Castro diz: "voltando ao tema do salário, todos quiséramos ir mais rápido, mas é necessário atuar com realismo". Isto é, a vontade política não pode sobrepor ao realismo econômico, pois isto simplesmente geraria inflação e desabastecimento.
Não é possível, na atual situação cubana, aumentar os salários sem aumentar a produtividade na área produtiva e a eficiência na administração do Estado. E para aumentar a produção, surge a necessidade de incentivos. O que o discurso deixa claro é: incentivos e discursos "morais" ou "ideológicos" não são mais suficientes. É preciso assumir que os incentivos econômicos, que resultam em diferenças de renda e riqueza, fazem parte das dinâmicas econômicas, seja no capitalismo, seja no socialismo. Parece que isso faz parte da condição humana.
Essas são razões que explicam, pelo menos em parte, o tema central do discurso: o socialismo significa igualdade de oportunidade e de direito, e não de renda; a igualdade não é igualitarismo. O igualitarismo, além de significar uma outra forma de exploração, coloca em risco econômico o próprio sistema socialista.

No artigo anterior, "socialismo cubano e a igualdade" http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=34063 , vimos que o avanço na área social criou uma pressão na área econômica que não pode ser resolvida somente através de uma vontade política. Em outras palavras, a vontade política tem que se ver diante do realismo econômico. Por isso, a necessidade de aumento na produtividade e na eficiência da administração do Estado fez Raul Castro colocar no centro do seu discurso a idéia de que "Socialismo significa justiça social e igualdade, mas igualdade de direitos, de oportunidades, não de renda. Igualdade não é igualitarismo. Esse, em última instancia, é também uma forma de exploração: a do bom trabalhador pelo que não é, ou pior ainda pelo vagabundo".
No fundo estamos enfrentando aqui a tensão entre objetivos políticos solidários, (como a de construir uma sociedade em que todos/as tenham igualmente uma vida material e espiritual digna e prazerosa), e a realidade da escassez dos recursos humanos, materiais e de conhecimento. Por isso, Raúl Castro diz: "No socialismo é indispensável que nos planos econômicos a alocação de recursos se ajuste estritamente a receitas disponíveis. Não podemos aspirar que 2 mais 2 sejam 5; 2 mais 2 são 4; mais bem às vezes no socialismo 2 mais 2 dá 3."
À primeira vista, para muitas pessoas e grupos que lutam por uma "sociedade igualitária", sem ricos e pobres, esse "realismo" de Raul Castro pode parecer, no mínimo, uma "fraqueza ideológica" ou a perda da "verdadeira" utopia. Alguns meses atrás, um conhecido teólogo da libertação defendeu, em um artigo publicado aqui na Adital, a tese de que devemos passar do capital material ao capital espiritual. Pois para ele o capital material tem limites e se exaure, enquanto que o capital espiritual (como o amor, a cuidado, a criatividade) seria ilimitado e inexaurível. Além dessa abundância sem limites, o capital espiritual não seria movido pela razão instrumental (por ex., o problema da produtividade e eficiência na economia), mas sim pela razão cordial e sensível que organizaria a nova vida social e a nova forma de produção.
Essa proposta parece-me muito atraente e bela. Para dizer a verdade, bela demais para ser real. A economia, como ciência e prática social, pressupõe a noção de escassez. Onde não há escassez não há necessidade de economia e não há bens econômicos. Por exemplo, como o ar que respiramos não é ainda escasso, ele não é considerado um bem econômico e não entra nas relações de compra e venda ou de controle econômico por parte do Estado socialista. Há escassez quando a oferta de um bem não suficiente para atender as necessidades ou desejos das pessoas ou consumidores.
O problema imediato dos pobres de todos os lugares não é a falta de cordialidade e amor (não que não sejam importantes na vida), mas é a carência de bens materiais indispensáveis para uma vida digna, trais como comida, leite, água potável, saneamento básico, remédios, casa, etc. E o que a realidade nos mostra é que esses bens materiais e os meios para produzi-los são escassos na vida concreta dos povos pobres e de muitos países, como Cuba. Valores éticos como solidariedade são fundamentais na vida das pessoas e das sociedades e devem estar presentes na organização da vida social e da produção econômica. Mas, é preciso encontrar uma forma concreta de organização econômico-política que seja eficiente suficiente para produzir e distribuir os bens materiais necessários para toda a população de um país e também do planeta. É aqui que entra em discussão a questão do capitalismo versus socialismo, ou algum outro tipo de sociedade.
É só quando colocamos na discussão a noção de escassez e relações de conflito que ocorrem no campo da produção e distribuição que a noção de igualdade deixa de ser abstrata e se torna uma discussão concreta. Em termos abstratos, a igualdade socialista ou a igualdade buscada por cristãos que lutam por Reino de Deus pode ser entendida como a igualdade de renda e riqueza. Mas, quando enfrentamos o problema da baixa produtividade e ineficiência administrativa, descobrimos que o "igualitarismo" pode se tornar uma outra forma de "exploração" (no dizer de R. Castro) e um empecilho para a superação da pobreza e da injustiça social.
Isso não quer dizer que não há diferenças entre a noção de igualdade no capitalismo e no socialismo cubano. Mesmo que, no nível mais abstrato, os dois sistemas assumam a mesma tese de que a igualdade significa a igualdade de direitos e oportunidades, no nível concreto há uma diferença fundamental. No capitalismo, essa igualdade é buscada através da democracia formal ("uma pessoa, um voto") e do sistema de mercado, enquanto no socialismo cubano (estou me referindo aqui só ao cubano para não entrar em discussão sobre vários tipos de socialismos existentes e possíveis) o Estado tem um papel importante no planejamento e organização da sociedade e da economia para garantir que todas as pessoas possam alcançar pelo menos um patamar de uma vida digna e assim tenham a igualdade real no que concerne a direitos e oportunidades. Nesse sentido, R. Castro diz: "a harmonia na planificação e na organização é essencial no socialismo. Sua ausência pode conduzir a um caos mais perigoso que o característico do capitalismo, onde as leis do mercado acabam por estabelecer certa ordem e equilíbrio, ainda que seja a custo de sacrifício de bilhões de seres humanos a escala mundial".
O desafio para o povo cubano e para todos que sonham com uma sociedade mais justa é a criação de um sistema político-econômico que seja marcado pela solidariedade e cuidado e seja, ao mesmo tempo, eficiente para atingir esses objetivos.

(Autor de, entre outros livros, "Cristianismo de libertação: espiritualidade e luta social". Ed. Paulus)

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