Por Jung Mo Sung
Nos últimos anos, com a derrocada do bloco
socialista e os avanços da revolução tecnológica presente nos países
capitalistas ricos, temos sido bombardeados por duas ideias:
a) A
história chegou ao fim, ou seja, o segredo da história foi revelado: toda a
evolução da história humana serviu para desembocar no sistema de mercado
capitalista e não há alternativas;
b) O
mercado livre é a única salvação para nossa economia (defendida pelos
neoliberais).
Essas ideias são duas caras de uma mesma moeda: a
apresentação do mercado capitalista como grande e verdadeiro sujeito da
história.
A ideia central dessa ideologia consiste no
seguinte: problemas econômicos e sociais são frutos dos desmandos do Estado na
economia, por causa dos desejos políticos e da burocracia do Estado de resolver
os problemas sociais sem respeitar as leis do mercado. A culpa toda é do
tamanho excessivo do Estado e dos políticos. A salvação, por outro lado, está
na livre iniciativa, no sistema de mercado livre. Para eles a falência do bloco
socialista é a prova definitiva da superioridade natural do capitalismo; de que
não se pode querer ter metas sociais, não se pode querer planejar a solução dos
problemas econômicos e sociais; de que não há saída fora da lógica do mercado.
Alguns como Gianetti, professor de economia, chegaram a comparar essa transição
econômica de uma economia com intervenção do Estado para a economia de total
liberdade de mercado com a travessia do deserto na busca da terra prometida em
que o grande desafio seria atenuar os sacrifícios da travessia. Passagem
(Páscoa) e sacrifícios: dois temas centrais nas religiões, principalmente no
judaísmo e no cristianismo.
Nesse mesmo tom religioso, a importante revista
econômica The Economist disse que “o deus fracassado da economia de comando
(socialista de modelo soviético) foi finalmente deposto” e que o moderno
sistema de comunicação está transmitindo a “boa-nova da democracia liberal
(capitalismo) para praticamente todos os cantos do globo”. Para eles o capitalismo
é o deus eficiente que anuncia ao mundo o evangelho (a boa nova). E depois eles
dizem que a economia não tem nada haver com religião! Mas o que é a lógica do
mercado que é apresentado como boa-nova e o único caminho de salvação – com
sacrifícios necessários, mas redentores -
para o paraíso chamado sistema de livre mercado?
O sistema de mercado capitalista tem duas
características centrais:
a) A
produção é controlada pelas empresas privadas e destinada ao mercado para
atender os desejos dos consumidores (os não consumidores, os pobres, os
excluídos do mercado, não são levados em conta pelas empresas produtoras de
mercadorias);
b) O
espirito que rege as relações dentro do mercado é o da concorrência, um regime
de sobrevivência dos mais capazes. Isso significa na prática a exclusão dos
“menos capazes”, dos que não têm as mesmas condições para concorrer com os mais
fortes no mercado.
O
capitalismo promete o paraíso da abundancia de consumo. Para obter a satisfação
de todos os desejos de consumo, eles prometem a superabundância de produção via
a maximização do progresso técnico. Quanto mais técnica, mas produção e,
portanto, mais satisfação de desejo de consumo (o capitalismo é um sistema
materialista-consumista por excelência). Para a maximização do progresso
tecnológico - o segredo dessa promessa – é necessário segundo eles, a
absolutização da lógica da sobrevivência dos mais competentes e a
exclusão/sacrifício dos menos competentes e dos mais pobres. Por isso, eles
dizem que os sacrifícios impostos à população pobre são sacrifícios
necessários.
Estamos num dilema: para se atingir o paraíso (a
abundância de consumo) é necessário abandonar o espirito de caridade cristã, de
solidariedade para com os mais fracos. Para se atingir o paraíso capitalista é
preciso uma cultura de insensibilidade social, ou como disse o ex-ministro
Roberto Campos, “uma mística cruel do desempenho e do culto da eficiência”. Mas
como uma mística pode ser cruel? E como uma mística cruel pode ser algo bom?
Mística é o caminho para o bem, a força que nos faz superar as tentações do
pecado.
E qual é o principal pecado para os neoliberais?
Para eles a causa fundamental e o principio dos males econômicos e sociais, ou
seja, o pecado original em termos religiosos, é a pretensão de alguns economistas,
políticos e lideres sociais de conhecer os mecanismos de mercado e, a partir
disso, utilizar o Estado e organismos sociais para intervir, limitar ou dirigir
os rumos da economia visando a solução dos problemas sociais.
Segundo Hayek, o pai do neoliberalismo, e seus
seguidores, todas as tentativas de solucionar problemas sociais por meio de
politicas sociais e econômicas que tiram a liberdade do mercado geram
necessariamente mais problemas sociais e mais pobreza. Isso porque, para eles,
toda intervenção no mercado só gera ineficiência econômica. Como eles
identificam a eficiência com avanço social, ineficiência econômica significaria
mais problemas sociais. Concluem que nós, os seres humanos, devemos abandonar o
desejo de construir uma sociedade melhor por meio de ações sociais e politicas,
tais como ações do Estado e da sociedade para diminuir a pobreza, a
desigualdade social e desemprego.
O único caminho que nos resta é, segundo eles, ter
fé na mão invisível do mercado e ver os sofrimentos dos desempregados e dos
excluídos como sacrifícios necessários exigidos pelas leis do mercado. Por
isso, essa mística, que deve nos ajudar a superar a tentação de fazer o bem –
título de um romance escrito pelo guru dos gurus da administração, P. Drucker
-, tem a aparência de cruel. Essa mística cruel vem acompanhada do culto, não
ao Deus da misericórdia e da vida, mas do culto à eficiência do e no mercado.
É verdade que um sistema baseado na sobrevivência do
“mais capaz” gera mais progresso técnico. O que não é verdade é que o progresso
técnico seja sinônimo do progresso humano ou de uma sociedade mais humana.
Quantidade de mercadoria produzida e consumida não é igual à qualidade de vida.
Principalmente se levarmos em consideração que os pobres estão excluídos dos benefícios
desse progresso técnico. Além disso, a obsessão para aumentar a produção em
menor tempo possível acabará esgotando os recursos naturais e destruindo o meio
ambiente que possibilita a existência da espécie humana.
Como a sociedade capitalista está fundada na ilusão
de que o mercado é o único caminho para o paraíso, identificado como plenitude
de consumo, o sacrifício dos pobres é apresentado como sacríficos necessários
para a redenção da sociedade. Com isso, cria-se uma cultura da insensibilidade social,
que possibilita aos integrados no mercado uma consciência tranquila diante dos
sofrimentos dos pobres.
O mercado é apresentado como um ser supra-humano
capaz de nos levar ao paraíso, exigindo para tanto sacrifícios necessários. A
tradição bíblica sempre criticou a exigência de sacrifícios humanos em nome de
instituições humanas divinizadas como uma forma de idolatria. E ainda hoje a
idolatria é o nosso grande desafio pastoral. Não estamos diante de um mundo
ateu ou secularizado, mas diante de uma idolatria do mercado.
Defender a vida dos que estão excluídos do mercado é
a melhor forma de negar a idolatria do mercado. A solidariedade com os pobres é
a melhor forma de vencer o cinismo que corrói por dentro a nossa sociedade.
Precisamos da força e da luz do Espirito Santo para continuar anunciando com
intrepidez a palavra de Deus (Atos 4.31), para proclamar que o mercado não deve
ser a pedra angular da nossa sociedade, mas sim, o Jesus ressuscitado (cf. Atos
4.11), que continua se revelando na pessoa do nosso irmão que clama: “Tenho
fome!”.
(SUNG, Jung Mo. Se Deus Existe Porque Há Pobreza? 2008. P. 76)
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