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terça-feira, 24 de março de 2015

O HORIZONTE DE COMPREENSÃO


Normalmente é aceitável que culturas diferentes tenham valores e costumes diferentes. Por exemplo, numa tribo pré-histórica da Nova Guiné pode ser importante comer a carne do inimigo morto em combate; o que seria repugnante para nós.

As próprias coisas tem significados diferentes em cada cultura. Por exemplo, uma carteira de madeira numa sala de aula, em qualquer lugar do Brasil, serve para o uso do aluno, por isso é uma carteira. Mas se essa mesma carteira cair de um avião no meio de uma tribo da Nova- Guiné, ela não será mais uma carteira, mas pode vir a ser um objeto de adoração porque caiu do céu, ou ainda matéria – prima para uma bela fogueira.

Aqui nós estamos falando do horizonte de compreensão. Uma coisa é algo dentro de um horizonte de compreensão. Mudando o horizonte, esse mesmo objeto ganha outro sentido e passa a ser uma outra coisa. Isso é mais perceptível quando mudamos de uma cultura para a outra radicalmente diferente, como nos exemplos relatados.

Agora, um fato que já não é tão claro para todos: numa mesma cultura ou numa mesma sociedade também há diversidade nos horizontes de compreensão.

Para entendermos melhor essa ideia vejamos um exemplo concreto. No contexto de um escritório, um objeto comprido e fino com a inscrição Bic, colocado sobre uma mesa cheia de papéis é compreendido como uma caneta que tem a finalidade de escrever.
Para isso o objeto foi produzido e comprado. Essa caneta tem utilidade enquanto tiver tinta. Quando a tinta acabar, não há mais utilidade e nem sentido em guarda-la. Ela pode ser guardada como uma lembrança de alguém que a deu, mas não mais com a função de caneta. Se a secretaria, a dona da caneta , se encontra em uma situação de perigo, sendo perseguida por um homem, e se na sua bolsa ela encontrar um objeto pontiagudo e comprido com a inscrição Bic, ela não vai se importar em saber se a caneta tem tinta ou não, mas se o objeto pode ser uma arma para a sua defesa. Não é uma arma ideal, mas, na ausência de coisa melhor, é com aquela que ela vai se defender.

Percebemos assim que com a mudança de contexto e de objetivo, a caneta, que normalmente na nossa sociedade é um objeto para escrever em papéis, pode ser interpretada como uma lembrança, com a finalidade de recordar de uma pessoa, ou como uma arma. O significado do objeto muda conforme a mudança do horizonte de compreensão.
Um fator importante na determinação do horizonte de compreensão éo objetivo ou o projeto de uma determinada situação.

Podemos fazer o caminho inverso. A partir do significado que alguém dá para um objeto podemos construir, mesmo que vagamente, o horizonte de compreensão e o objetivo dentro do contexto dado.

HORIZONTE IDOLÁTRICO

Para termos uma ideia do que sejam esses horizontes de compreensão é importante saber que quando nascemos recebemos o horizonte de compreensão da sociedade e do grupo social a que pertencemos. Nós não criamos um horizonte a partir do nada; ele é anterior a nós e nos tornamos pessoa dentro dele. Assim cabe perguntar a nós mesmos sobre o horizonte de compreensão da sociedade brasileira, dentro do qual nascemos e crescemos.

Não interessa discutir a fundo o horizonte de compreensão da sociedade brasileira e dos diversos grupos que a compõe. Mas de forma simplificada, podemos traçar algumas características. O projeto fundamental de nossa sociedade, que é determinante na formação do horizonte de compreensão, é acumular capital; em outras palavras ganhar dinheiro. É por isso que a chamamos capitalista.

Se o projeto fundamental é ganhar dinheiro, as coisas tem valor e adquirem sentido à medida que servem para ganhar dinheiro. Isso porque as coisas tem valor dentro de uma sociedade ou num contexto à medida que servem como meio para atingir o fim, o projeto. É só lembrarmos da caneta. Quando ela não serve mais para escrever, nós a jogamos fora.
Esse ponto nos ajuda a entender porque algumas pessoas nos perguntam: “Eu não entendo porque vocês trabalham com os pobres na igreja. O que vocês ganham com isso?”. Elas não compreendem, porque para elas não há sentido nem valor em se fazer algo a troco de nada. O fundamento do horizonte de compreensão dessas pessoas é ganhar. Elas internalizaram plenamente o horizonte e o projeto da sociedade capitalista.

Não somente as coisas adquirem valor a medida em que se tornam um meio de ganhar dinheiro, mas as pessoas também são valorizadas, ou não, de acordo com o dinheiro que possuem. As pessoas de muitas posses, os ricos, são consideradas as “pessoas de bem”; as que não têm ou não conseguem ganhar dinheiro, os pobres, são consideradas as pessoas sem valor, ou “gentinha”.

Esse é o horizonte de compreensão da nossa sociedade capitalista. Um horizonte que a tradição bíblica chama de idolátrica. É idolátrica porque diz que a dignidade humana não vem do fato de todas as pessoas serem filhos ou filhas de Deus, mas de possuírem um produto humano, o dinheiro. A fonte da dignidade não é Deus, mas um ídolo: o dinheiro elevado à condição de fim último, absoluto, Mamom.

A pobre na nossa sociedade idolátrica é considerado, portanto uma pessoa sem valor, indigna incompetente. Alguém que não tem valor e dignidade também não tem direitos. Dentro dessa compreensão, não faz sentido dizer que os pobres são “preferidos” de Deus e que a igreja deve fazer a opção por eles, porque no fundo as pessoas acreditam em outro deus, que não é o Deus de Jesus.

Na verdade, muitas pessoas acreditam que a sociedade capitalista não pode ou não deve ser mudada. Acreditam que o problema social não é um problema causado pela própria estrutura da sociedade, mas que é fruto da incompetência individual dos pobres. Ao acreditar que o capitalismo não deve ou não pode ser transformado acabam identificando essa estrutura social como vontade de Deus ou como algo natural. Pois só o que é natural ou vontade divina não pode ou não deve ser transformado.

HORIZONTE DO REINO DE DEUS

Outro horizonte de compreensão que está presente na nossa discussão é o do Reino de Deus.: o horizonte que nasce da conversão.
A palavra conversão em grego é “metanóia”, que é composta de duas palavras. A primeira é “metá”, que significa “mudança” ou “para além”. Por exemplo, a palavra metamorfose significa “mudança de forma”, enquanto que metafisica significa “depois” ou “para além da física“. A segunda parte é “nóia”, que vem de “nous” e pode ser traduzido como horizonte de compreensão. Nesse sentido, conversão significa MUDANÇA DE HORIZONTE DE COMPREENSÃO ou VER ALÉM DO HORIZONTE DE COMPREENSÃO VIGENTE; assim: VER E VIVER DE UM MODO DIFERENTE DAS PESSOAS QUE CONTINUAM PRESAS AO HORIZONTE DO MUNDO.

Para a cultura dominante no mundo atual, as pessoas valem de acordo com sua capacidade econômica ou seu sucesso alcançado. Por isso não conseguem ver a dignidade humana nas pessoas pobres ou em outras que não satisfazem suas exigências de status. Quando nos convertemos, temos a experiência de Deus e vivemos de acordo com a fé na revelação de Deus, passamos a ver mais as pessoas como elas realmente são. Ou melhor, como realmente deveriam ser tratadas e reconhecidas. Vemos a partir da nossa esperança, enquanto o mundo continua tratando as pessoas como coisas, idolatrando as riquezas e destruindo a natureza. Viver novas relações com as pessoas é viver aquilo que ainda não existe como realidade comum no mundo, e ver o que ainda é invisível aos olhos do mundo. Daí a fé ser compreendida como a posse ou a garantia daquilo que se espera e a convicção do que não se vê – com os olhos do mundo – (Hebreus 11.1).

O horizonte do Reino de Deus, no qual entramos pela fé, mostra-nos que Deus não exige nada de nós para que sejamos amados e reconhecidos como dignos. Deus nos ama gratuitamente, não nos exige nada em troca. E essa fé, é o conhecimento dessa realidade que nos faz ver a dignidade humana em todas as pessoas, independente de sua condição social, étnica, econômica, religiosa...

Num mundo em que não se reconhece essa verdade fundamental, mas que a mantém prisioneira do pecado, precisamos dar testemunho  de nossa fé defendendo em primeiro lugar a dignidade das pessoas mais pobres e marginalizadas. É assim que podemos dar testemunho do Deus que é amor e que ama a todos gratuitamente e não faz distinção de pessoas.

Esta é uma verdade espiritual que o mundo precisa ouvir hoje:
Deus ama a cada um de nós gratuitamente. Mesmo que eu peque e renegue a Deus continuarei sendo amado por ele. Essa é a grande novidade do cristianismo. Porque Deus ama a cada um gratuitamente precisamos construir um mundo em que esse amor  possa ser experienciado no cotidiano. Um mundo em que a reconciliação e o perdão sejam cotidianos, em que o espirito de partilha e de comunidade supere nossos instintos de concorrência e rivalidade. Uma sociedade que não tenha como objetivo último acumular mais riqueza, mas partilhar mais vida com outras pessoas. Pois a verdadeira vida espiritual não cresce na acumulação, mas no compartilhamento.


(Extraído do Livro: Se Deus Existe Porque Há Pobreza?)    

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