Antes de mais nada é necessário acabar com o mito de que o cientista é uma pessoa que pensa melhor do que as outras. O fato de uma pessoa ser muito boa para jogar xadrez não significa que ela seja mais inteligente do que os não-jogadores. Você pode ser um especialista em resolver quebra-cabeças. Isso não o torna mais capacitado na arte de pensar. Tocar piano (como tocar qualquer instrumento) é extremamente complicado. O pianista tem de dominar uma série de técnicas distintas-oitavas, sextas, terças, trinados, legatos, staccatos-e coordena-las, para que a execução ocorra de forma integrada e equilibrada. Imagine que resolva especializar-se (note bem esta palavra, um dos semideuses, mitos, ídolos da ciência!) na técnica dos trinados apenas. O que vai acontecer é que ele será capaz de fazer trinados como ninguém- só que ele não será capaz de executar nenhuma música. Cientistas são como pianistas que resolveram especializar-se numa técnica só.
Imagine as várias divisões da ciência – física, química, biologia, psicologia, sociologia- como técnicas especializadas. No inicio pensava que tais especializações produziriam, miraculosamente, uma sinfonia. Isso não ocorreu. O que ocorre, frequentemente, é que cada músico é surdo para o que os outros estão tocando. Físicos não entendem os sociólogos que não sabem traduzir as afirmações dos biólogos, que por sua vez não compreendem a linguagem da economia, e assim por diante...
Imagine as várias divisões da ciência – física, química, biologia, psicologia, sociologia- como técnicas especializadas. No inicio pensava que tais especializações produziriam, miraculosamente, uma sinfonia. Isso não ocorreu. O que ocorre, frequentemente, é que cada músico é surdo para o que os outros estão tocando. Físicos não entendem os sociólogos que não sabem traduzir as afirmações dos biólogos, que por sua vez não compreendem a linguagem da economia, e assim por diante...
...a ciência não é um órgão novo de conhecimento. A ciência é a hipertrofia de capacidade que todos têm. Isso pode ser bom, mas pode ser muito perigoso. Quanto maior a visão em profundidade, menor a visão em extensão. A tendência da especialização é conhecer cada vez mais de cada vez menos...
O QUE É SENSO COMUM?
Esta Expressão não foi inventada pelas pessoas de senso comum. Creio que eles nunca se preocuparam em se definir. Um negro, em sua pátria de origem, não se definiria como pessoa “de cor”. Evidentemente. Esta expressão foi criada para os negros pelos brancos. Da mesma forma a expressão “senso comum” foi criada por pessoas que se julgam acima do senso comum, como uma forma de se diferenciarem das pessoas que, segundo seu critério, são intelectualmente inferiores. Quando um cientista se refere ao senso comum, ele está, obviamente, pensando nas pessoas que não passaram por um treinamento científico. Vamos pensar sobre uma dessas pessoas.
Ela é uma dona-de-casa. Pega o dinheiro e vai à feira. Não se formou em coisa alguma. Quando tem de preencher formulários, diante da informação “profissão” ela coloca “prendas domésticas” ou “do lar”. Uma pessoa como milhares de outras. Vamos pensar em como ela funciona, lá na feira , de barraca em barraca.
Seu senso comum trabalha com problemas econômicos: como adequar os recursos de que dispõe, em dinheiro, às necessidades de sua família, em comida. E para isso ela tem de processar uma série de informações. Os alimentos oferecidos são classificados em indispensáveis, desejáveis e supérfluos. Os preços são comparados.
A estação dos produtos é verificada: produtos fora da estação são mais caros. Seu senso econômico, por sua vez, está acoplado a outras ciências. Ciências humanas, por exemplo. Ela sabe que alimentos não são apenas alimentos. Sem nunca haver lido Veblen ou Lévi-Strauss, ela sabe do valor simbólico dos alimentos. Uma refeição é uma dádiva da dona-de-casa, um presente. Com a refeição ela diz algo. Oferecer chouriço para um marido de religião adventista, ou feijoada para uma sogra que tem úlceras, é romper claramente com uma política de coexistência pacifica. A escolha de alimentos, assim, não é regulada apenas por fatores econômicos, mas por fatores simbólicos, sociais e políticos. Além disso, a economia e a politica devem fazer lugar para o estético: o gostoso, o cheiroso, o bonito. E para o dietético. Assim, ela ajunta o bom para comprar, com o bom para dar, com o bom para ver, cheirar e comer, com o bom para viver. É senso comum? É. A dona-de-casa não trabalha com aqueles instrumentos que a ciência definiu como científicos. É comportamento ingênuo, simplista, pouco inteligente? De forma alguma. Sem o saber, ela se comporta como um pianista, em oposição ao especialista em trinados. É provável que uma mulher formada em dietética, e em decorrência de sua (de) formação, em breve se veja frente a problemas na casa, em virtude de sua ignorância do caráter simbólico e politico da comida. Especialista em trinados.
(Rubem Alves. Filosofia da Ciência: Introdução ao Jogo e Suas Regras)
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