log

log

quarta-feira, 29 de abril de 2015

A Teologia do Capital

De que forma a nação mais ale­ga­da­mente evan­gé­lica do planeta (e, portanto, ofi­ci­al­mente a mais fiel ao espírito do Novo Tes­ta­mento) acabou se tornando dentre todas a mais bru­tal­mente con­su­mista, mer­can­ti­lista e mate­ri­a­lista (e, portanto, a menos fiel ao espírito do evangelho e do Novo Testamento)?


Segundo Max Weber, em seu A Ética Pro­tes­tante e o Espírito do Capi­ta­lismo (1904), a resposta à pergunta está, para­do­xal­mente, na teologia da própria Reforma. Tudo no nosso com­pe­ti­tivo mundo capi­ta­lista, de telefones celulares a Big Brother, de Intel a sequilhos Daltony – passando por Tele-Sena, orkut, Danone Activia, Mae West, Pastilhas Valda, Pasta Jóia e Amado Batista – seria o inusitado resultado de uma curiosa inter­pre­ta­ção da Bíblia sus­ten­tada por Calvino e seus segui­do­res. O capi­ta­lismo é uma curi­o­si­dade teológica.


Até o século XVI a retórica cristã havia defendido, com algum sucesso, os méritos da fru­ga­li­dade e do desapego ao dinheiro e aos bens materiais. O sucesso deve ser con­si­de­rado parcial porque desde o quarto século a Igreja como ins­ti­tui­ção achara-se des­pu­do­ra­da­mente poderosa e cada vez mais rica, e grande parte do poder sub­ver­sivo da mensagem do Novo Tes­ta­mento se perdera na con­tra­di­ção.


Por volta de 1500 a Igreja Católica cha­fur­dava numa complexa rede de favores políticos e econô­mi­cos, tendo lançado no mercado uma diver­si­fi­cada linha de produtos espi­ri­tu­ais a fim de aumentar suas receitas materiais – linha que incluía cartões de perdão pré-pago e lotes de salvação (com vista para Deus!) com o selo de garantia do Santo Padre. Mesmo diante desse cenário, a intran­si­gente doutrina de Jesus sobre as arma­di­lhas do amor ao dinheiro e às riquezas havia sobre­vi­vido na cultura e na ética popular.


Com a Reforma, tudo isso iria mudar.

Lutero começou denun­ci­ando a venda de indul­gên­cias, ao mesmo tempo em que condenava os monges como uni­ver­sal­mente ociosos e o Papa como mãe de todas as san­gues­su­gas. Sua tese do sacer­dó­cio universal demons­trava como bíblica a noção de que o homem pode servir legi­ti­ma­mente a Deus em todas as áreas da vida civil – sendo que ninguém precisa da inter­me­di­a­ção de um padre, sacerdote, monge ou freira para estar mais perto de Deus. Como con­seqüên­cia, voci­fe­rava Lutero, Deus é efi­caz­mente glo­ri­fi­cado na vida familiar e no trabalho honesto do dia-a-dia.


O trabalho foi portanto ofi­ci­al­mente redimido pelo lute­ra­nismo – porém, segundo Weber, foi a teologia mais elaborada de Calvino que acabou defi­ni­ti­va­mente mudando os pratos da balança.
A doutrina cal­vi­nista ganhou noto­ri­e­dade, também na sua época, devido a sua ênfase sem pre­ce­den­tes nos pre­des­ti­na­dos, aquela gente que Deus escolheu para herdar a vida eterna. Os pre­des­ti­na­dos estariam separados, segundo critérios pelos quais somente Deus poderia responder, para a salvação e o paraíso; todos os outros estariam con­de­na­dos ao inferno e nada podia mudar isso, visto que a salvação não pode ser comprada (mais prejuízo para a venda de indul­gên­cias) e Deus é imutável.
Embora fosse tec­ni­ca­mente impos­sí­vel esta­be­le­cer se deter­mi­nada pessoa era com certeza um dos pre­des­ti­na­dos, o consenso era de que a marca divina deixava evi­dên­cias inequí­vo­cas de aprovação na vida da pessoa escolhida. Aqui, neste selo visível de homo­lo­ga­ção, estava o ver­da­deiro chamariz da coisa, porque o sucesso nos empre­en­di­men­tos finan­cei­ros foi tomado desde cedo como sendo forte indicação de uma possível inclusão da pessoa entre os predestinados.


A partir de indi­ca­ções como a do terceiro verso do salmo primeiro, ficou entendido que a marca dis­tin­tiva do eleito estava em que “tudo quanto fizer pros­pe­rará”. Para demons­trar ser um dos perdidos bastava viver de modo indolente, des­cui­dado e per­du­lá­rio; já um sujeito austero, econômico e empre­en­de­dor produzia grave evidência de que estava entre os escolhidos.


Calvino adentrou terreno ainda mais inédito ao assinalar que todos, mesmo os ricos, deveriam trabalhar. Ele fez ao mesmo tempo o que pode para des­vin­cu­lar riqueza de dis­si­pa­ção, defen­dendo que tanto ricos quanto pobres deveriam adotar um modo de vida austero e tem­pe­rante. O empre­en­de­dor era instado a não gastar um tostão em bens supér­fluos ou car­na­li­da­des; ao contrário, deveria rein­ves­tir cada centavo dos seus lucros de forma a financiar novos empre­en­di­men­tos – pre­ci­sa­mente como o Tio Patinhas e seu ancestral Ebenezer Scrooge, que sin­te­ti­zam a ética de trabalho cal­vi­nista.
O que os pre­des­ti­na­dos tinham ainda em comum com o Tio Patinhas é que recusavam-se por princípio a utilizar seus próprios lucros para ajudar os mais pobres a se alçarem da sua condição ou mitigarem suas agruras. Entendia-se que esse tipo de libe­ra­li­dade, por mais bem-intencionada que parecesse, violava de modo irre­sis­tí­vel a vontade de Deus, já que era somente pelo trabalho de suas próprias mãos que os mais pobres tinham como produzir evidência de que estavam entre os pre­des­ti­na­dos. A avareza era, portanto, tida como coisa espe­ci­al­mente nobre e altruísta.


Os empre­ga­dos do empre­en­de­dor, eles mesmos cal­vi­nis­tas, deveriam por outro lado encarar seu trabalho como seu “chamado” – chamado que devia ser executado com dili­gên­cia e alegria mesmo que a recom­pensa finan­ceira e terrena fosse pequena.


Pronto: aquilo que durante a Idade Média abso­lu­ta­mente não se tolerava era agora enco­ra­jado dire­ta­mente, e com a severa sanção da teologia revista e atu­a­li­zada. A vida de cada cristão deveria ser a partir de agora uma cruzada pessoal em busca do lucro ilimitado. A riqueza e a pros­pe­ri­dade passaram a ser dever religioso; a gene­ro­si­dade, insidiosa tentação.


Nascia o que Weber chama de “ética pro­tes­tante do trabalho” – visão de mundo que glorifica a dili­gên­cia, a pon­tu­a­li­dade, a economia, a aus­te­ri­dade e a ine­lu­tá­vel supre­ma­cia do ambiente de trabalho.


Na Europa essa nova ética do trabalho teve que lutar contra séculos de ranço e resis­tên­cia católica. Importada com sucesso para o Novo Mundo ela geraria os Estados Unidos, com seus milagres e contradições.


Ele está no meio de nós.

Nenhum comentário:

Postar um comentário