Segundo Max Weber, em seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904), a resposta à pergunta está,
paradoxalmente, na teologia da própria Reforma. Tudo no nosso competitivo
mundo capitalista, de telefones celulares a Big Brother, de Intel a sequilhos
Daltony – passando por Tele-Sena, orkut, Danone Activia, Mae West, Pastilhas
Valda, Pasta Jóia e Amado Batista – seria o inusitado resultado de uma curiosa
interpretação da Bíblia sustentada por Calvino e seus seguidores. O capitalismo
é uma curiosidade teológica.
Até o século XVI a retórica
cristã havia defendido, com algum sucesso, os méritos da frugalidade e do
desapego ao dinheiro e aos bens materiais. O sucesso deve ser considerado
parcial porque desde o quarto século a Igreja como instituição achara-se despudoradamente
poderosa e cada vez mais rica, e grande parte do poder subversivo da mensagem
do Novo Testamento se perdera na contradição.
Por volta de 1500 a Igreja
Católica chafurdava numa complexa rede de favores políticos e econômicos,
tendo lançado no mercado uma diversificada linha de produtos espirituais
a fim de aumentar suas receitas materiais – linha que incluía cartões de perdão
pré-pago e lotes de salvação (com vista para Deus!) com o selo de garantia do
Santo Padre. Mesmo diante desse cenário, a intransigente doutrina de Jesus
sobre as armadilhas do amor ao dinheiro e às riquezas havia sobrevivido na cultura e na ética popular.
Com a Reforma, tudo isso
iria mudar.
Lutero começou denunciando a
venda de indulgências, ao mesmo tempo em que condenava os monges como universalmente
ociosos e o Papa como mãe de todas as sanguessugas. Sua tese do sacerdócio
universal demonstrava como bíblica a noção de que o homem pode servir legitimamente
a Deus em todas as áreas da vida civil – sendo que ninguém precisa da intermediação
de um padre, sacerdote, monge ou freira para estar mais perto de Deus. Como conseqüência,
vociferava Lutero, Deus é eficazmente glorificado na vida familiar e no
trabalho honesto do dia-a-dia.
O trabalho foi portanto oficialmente
redimido pelo luteranismo – porém, segundo Weber, foi a teologia mais
elaborada de Calvino que acabou definitivamente mudando os pratos da
balança.
A doutrina calvinista ganhou
notoriedade, também na sua época, devido a sua ênfase sem precedentes nos
predestinados, aquela gente que Deus escolheu para herdar a vida eterna. Os
predestinados estariam separados, segundo critérios pelos quais somente
Deus poderia responder, para a salvação e o paraíso; todos os outros estariam
condenados ao inferno e nada podia mudar isso, visto que a salvação não pode
ser comprada (mais prejuízo para a venda de indulgências) e Deus é imutável.
Embora fosse tecnicamente
impossível estabelecer se determinada pessoa era com certeza um dos predestinados,
o consenso era de que a marca divina deixava evidências inequívocas de
aprovação na vida da pessoa escolhida. Aqui, neste selo visível de homologação,
estava o verdadeiro chamariz da coisa, porque o sucesso nos empreendimentos
financeiros foi tomado desde cedo como sendo forte indicação de uma possível
inclusão da pessoa entre os predestinados.
A partir de indicações como a
do terceiro verso do salmo primeiro, ficou entendido que a marca distintiva
do eleito estava em que “tudo quanto fizer prosperará”. Para demonstrar ser
um dos perdidos bastava viver de modo indolente, descuidado e perdulário;
já um sujeito austero, econômico e empreendedor produzia grave evidência de
que estava entre os escolhidos.
Calvino adentrou terreno ainda
mais inédito ao assinalar que todos, mesmo os ricos, deveriam trabalhar. Ele
fez ao mesmo tempo o que pode para desvincular riqueza de dissipação,
defendendo que tanto ricos quanto pobres deveriam adotar um modo de vida
austero e temperante. O empreendedor era instado a não gastar um tostão em
bens supérfluos ou carnalidades; ao contrário, deveria reinvestir cada
centavo dos seus lucros de forma a financiar novos empreendimentos – precisamente
como o Tio Patinhas e seu ancestral Ebenezer Scrooge, que sintetizam a ética
de trabalho calvinista.
O que os predestinados tinham
ainda em comum com o Tio Patinhas é que recusavam-se por princípio a utilizar
seus próprios lucros para ajudar os mais pobres a se alçarem da sua condição ou
mitigarem suas agruras. Entendia-se que esse tipo de liberalidade, por mais
bem-intencionada que parecesse, violava de modo irresistível a vontade de
Deus, já que era somente pelo trabalho de suas próprias mãos que os mais pobres
tinham como produzir evidência de que estavam entre os predestinados. A
avareza era, portanto, tida como coisa especialmente nobre e altruísta.
Os empregados do empreendedor,
eles mesmos calvinistas, deveriam por outro lado encarar seu trabalho como
seu “chamado” – chamado que devia ser executado com diligência e alegria
mesmo que a recompensa financeira e terrena fosse pequena.
Pronto: aquilo que durante a
Idade Média absolutamente não se tolerava era agora encorajado diretamente,
e com a severa sanção da teologia revista e atualizada. A vida de cada
cristão deveria ser a partir de agora uma cruzada pessoal em busca do lucro
ilimitado. A riqueza e a prosperidade passaram a ser dever religioso; a generosidade,
insidiosa tentação.
Nascia o que Weber chama de
“ética protestante do trabalho” – visão de mundo que glorifica a diligência,
a pontualidade, a economia, a austeridade e a inelutável supremacia
do ambiente de trabalho.
Na Europa essa nova ética do
trabalho teve que lutar contra séculos de ranço e resistência católica.
Importada com sucesso para o Novo Mundo ela geraria os Estados Unidos, com seus
milagres e contradições.
Ele está no meio de nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário