O centenário da Abolição da Escravatura está ensejando,
embora tardiamente, toda uma oportunidade para que a sociedade brasileira
proceda uma ampla discussão sobre a questão negra, que resulte em uma
substituição dos Mitos da História Oficial. Esses mitos, principalmente os da “escravidão
benigna” e da “democracia racial” são veiculados pelos livros didáticos e pelos
autores comprometidos com a ótica dos dominadores. Os cristãos evangélicos, por
seu compromisso com a verdade como um dos valores éticos fundamentais, devem
saudar este esforço e apoiá-lo, pois sendo esses mitos mentiras e, sendo o
diabo o pai da mentira, essa falsa história tem uma dimensão satânica e
pecaminosa.
A nossa escravidão nada teve de “benigna”. Milhões de negros
morreram nos fétidos e promíscuos porões dos navios, já na travessia da África;
morreram de maus tratos e torturas, morreram na repressão aos quilombos,
morreram como (in) voluntários na Guerra do Paraguai. O sadismo nas relações
senhores-escravos e os abusos e humilhações de natureza sexual (origem de nossa
“morenidade”), conhecidos à luz dos documentos da época, clama aos céus e
sensibiliza os cristãos em seu senso de justiça.
A “generosa” Abolição resulta de um novo momento da história
do capitalismo industrial em expansão, carente de um mercado consumidor de
homens livres, onde a escravidão se constituía cada vez mais em um anacronismo.
No caso brasileiro, não se concebe a Abolição proposta pelo Partido Liberal – o
que incluía uma Reforma Agrária para que os negros tivessem uma gleba para
recomeçar a vida – mas sim do Partido Conservador, que os torna livres para a
miséria e a marginalidade.
Durante cem anos, a questão negra tem sido mal interpretada
pelos teóricos da direita e da esquerda. Os da direita, com a afirmação de que
a não ascensão dos negros não é uma questão de racismo, mas uma limitação socioeconômica
(“negro rico vira branco”). Os da esquerda, que leram um Marx de uma Europa
toda-branca caem em um reducionismo da luta de classes, menosprezando a
variável racista. O negro que sobe no Brasil ainda é uma exceção. Em o fazendo,
ele é visto como um “branco” de pele negra e não como um negro com valor intrínseco.
Milhões de imigrantes brancos e amarelos ascendem socialmente no Brasil em uma
ou duas gerações, porque, as portas dessa sociedade se lhes abrem mais
facilmente do que a um negro. O negro para vencer tem que se “embranquecer”, “amorenar”,
“desnegrecer”. É o clássico “apesar de”: “apesar de negro é uma boa pessoa, é
inteligente, é trabalhador, etc”. é o “negro de alma branca”.
Não temos discriminações legais, mas vivemos no meio de
preconceitos, cujo grande teste é a resposta a seguinte indagação: “Você que
não é racista, se casaria com um negro, ou aceitaria que o seu filho se casasse
com uma negra?” Assista às novelas e comerciais da televisão e veja os papeis atribuídos
aos negros: eles continuam “no seu lugar”.
No campo religioso, tivemos a omissão, a conivência criminosa,
o silencio culposo da Igreja Romana em relação à escravidão e a destruição da
cultura negra. Entre os protestantes, tivemos uma postura abolicionista,
influenciada por evangélicos ingleses. Uma vez abolida a escravidão, porém o
comportamento protestante tem sido altamente questionável. Os missionários que
aqui aportaram eram todos brancos, oriundos de igrejas monocolores
(todo-brancas), principalmente do Sul daquele país, divididas das irmãs do
Norte quando a Guerra da Secessão. Os padrões culturais aqui impostos foram os
padrões brancos anglo-saxões.
Ninguém pode se esquecer que a experiência do Sul dos
Estados Unidos, até bem pouco, e da África do Sul, ainda hoje, revelam um
potencial racista em setores amplos da teologia fundamentalista. Uma das razões
que levaram ilustre sociólogo brasileiro, recentemente falecido, a deixar o
protestantismo foi a sua convivência, nos anos 20, com igrejas racistas nos
Estados Unidos e o presenciar de um linchamento de um negro por piedosos diáconos
daquelas igrejas, devotados militantes da Klu Klux Klan e da John Birch
Society.
Todos nós somos chamados a uma meia culpa, a um
arrependimento e a uma mudança de atitude. Não podemos, também, esperar, desde
já, maturidade e moderação dos movimentos negros de hoje, quando experimentam
uma organização e depois de séculos de marginalização e de ressentimentos. Mas ainda,
depois de séculos de isolamento em relação às raízes africanas, inseridos
compulsoriamente nesse país que, lusotropical ou o que seja, é, na verdade,
muito europeu (desembarque em Lisboa, Madri ou Roma e veja o quanto europeus
nós, brasileiros somos).
Esse distanciamento das raízes tem ocorrido para que haja
uma tendência, entre os nossos negros, a associar a negritude com as
manifestações religiosas afro-animistas e a ver no cristianismo uma religião do
branco dominador, esquecido de que Jesus foi um asiático (nasceu na Palestina),
foi refugiado politico na África (Egito) e que a Igreja começou no Oriente. Em virtude
da colonização, para os nossos negros a África é aquela dos seus antepassados,
mas que, em certo sentido, existe cada vez menos. Desconhecem a África de hoje,
cada vez mais islâmica e cada vez mais cristã (o continente onde hoje mais
cresce o cristianismo, principalmente o protestantismo).
Por outro lado, para muitos cristãos brancos, toda
manifestação cultural africana é tida como “demoníaca” ou “intrinsecamente associada
à macumba”. O preconceito etnocêntrico, a ignorância antropológica (que não
sabe distinguir aculturação de sincretismo) e a deplorável falta de intercambio
com as igrejas concorrem para o fortalecimento desse erro de visão. A África é
cada vez mais cristã, sim, mas o cristianismo ali é cada vez mais africano, com
sua reflexão teológica autóctone, com suas roupas, danças e ritmos.
A histórica repressão por parte dos brancos cristãos e a
desafricanização dos convertidos, lamentavelmente, deixaram os negros, tantas
vezes, sem outra saída a não ser o terreiro de candomblé como seu espaço social
e cultural, de afirmação e preservação de identidade. A gigantesca expansão dos
cultos afro-ameríndios no Brasil de hoje é um atestado do fracasso da estratégia
missionaria transcultural crista na evangelização dos nossos negros.
Chama-nos a atenção o fato de que o maior sucesso na
evangelização dos judeus norte- americanos tem sido o estabelecimento de
Sinagogas Messiânicas: igrejas de judeus-cristãos que preservam sua cultura. Por
analogia, para os islâmicos a estratégia poderia ser a mesma: Mesquitas Messiânicas.
Por que não admitirmos que a evangelização dos nossos negros passaria pelo
estabelecimento de Terreiros de Jesus: Cristocêntricos, bíblicos e, ao mesmo
tempo africanos, onde os convertidos estariam entre os seus e como o seus, em
sua vestimenta e alimentação, em sua alegria e musicalidade?
Como nas igrejas africanas hoje, aqui também os atabaques
tocariam para Jesus.
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