O Fim da Era Moderna
O racionalismo fazia sentido de maneira tão soberba, especialmente porque suas conquistas científicas e tecnológicas eram tão evidentes, que parecia absurdo questioná-lo. Não é de se admirar, pois, que seus pressupostos tenham sido logo adotados também pelas ciências humanas (incluindo a teologia). A própria palavra “ciência” passou a significar conhecimento exato, dados absolutamente confiáveis, etc. teólogos e outros estudiosos das ciências humanas adotaram essa visão e aplicaram-na meticulosamente à sua disciplina – como o atesta boa parte da teologia, em todas as suas subdisciplinas, do século 19 e início do século 20.
Atualmente, este edifício está sendo contestado. O primeiro ataque decisivo a ele não proveio (como se poderia esperar) das ciências humanas. Ele se originou, para grande surpresa, exatamente da disciplina onde os cânones cartesianos e newtonianos pareciam ser de todo invioláveis: o campo da física, onde estudiosos como Albert Einstein e Niels Bohr introduziram uma revolução no pensamento, tanto que Werner Heisenberg pôde afirmar que os próprios fundamentos da ciência começaram a abalar-se e que havia quase uma necessidade de iniciar tudo de novo. Com o passar do tempo, é natural que se seguissem reações similares em outras disciplinas, incluindo as ciências humanas.
A estrutura objetivista que se impôs à racionalidade teve um efeito mutilador sobre a necessidade indagatória do ser humano; ela levou a um reducionismo desastroso e, por conseguinte, a um crescimento humano enfezado.
Uma Estrutura Fiduciária
Fundamental para o paradigma iluminista era a distinção radical entre fatos e valores. Esse edifício todo, porém, ruiu. Os muros que o positivismo e o empirismo erigiram entre sujeito e objeto e entre valor e fato começaram a esboroar-se (cf. Lamb 1984:124s.) Descobriu-se que não é possível observar a realidade sem, de certa forma, alterar o que se vê. Cada ato de conhecimento, afirma Polanyi (1958:17), inclui uma valoração.
Toda essa questão se tornou ainda mais complexa pela circunstancia de a ciência moderna ter disponibilizado aos seres humanos poderes antes inimagináveis – poderes que não se podem mais encarar como neutros ou isentos de valores e para os quais as pessoas estão totalmente despreparadas (cf. Guardini 1950:94). As últimas ilusões quanto à inocência da ciência diz M. Wartofski, foram arrastadas pelos ventos de Hiroshima e Nagasaki (ap. Lamb 1984:123). Deveras, a distinção feita pela ciência entre fato e valor conduziu ao suicídio da mesma (cf. Bloom 1987:38s.). “O objetivismo”, assevera Polanyi (1958:286), “falsificou totalmente nosso conceito de verdade”.
Não foram apenas os monstros criados e então desatados pela ciência que ajudaram a ciência iluminista a cair em si. Porta-vozes do Terceiro Mundo também começaram a questionar a neutralidade dela perguntando a serviço de quais interesses se encontrava. Eles salientaram que a ciência, longe de ser imparcial, estava erigida sobre as presunções culturais e imperialistas do Ocidente e que ela representava particularmente, um instrumento de exploração e deveria ser investigada em relação à práxis donde provém.
Sabemos, pois, agora que não existem “fatos brutos”, mas apenas fatos interpretados e que a interpretação é condicionada pela estrutura de plausibilidade do cientista, que em grande parte, é engendrada social e culturalmente. Um exemplo está no papel que a ideologia exerceu no Ocidente. As grandes ideologias do século 20 – marxismo, capitalismo, fascismo e nacional-socialismo – só foram possíveis devido ao cientificismo iluminista. É da natureza da ideologia apresentar-se disfarçada de ciência e apelar para a razão objetiva. Lubbe sustenta que as ideologias estão empregando todas as técnicas da ciência com o intuito de convencer a todos de que elas são objetivamente verdadeiras (1986:54).
A despeito de (ou, talvez, por causa de) sua alegada base cientifica, as ideologias funcionam, contudo, para todos os efeitos práticos, como religiões (cf. Lubbe 1986:53-73). Mais exatamente, elas são religiões ersatz-substitutas da religião (p. 57) – e tendem a assumir formas explicitamente religiosas e até mesmo rituais (p. 58s., 62). Elas são, segundo Raymond Aron, “o ópio dos intelectuais” (ap. Lubbe 1986:63).
Tudo isso – a física de Einstein, a descoberta da ambiguidade do poder, a crítica implacável do Terceiro Mundo quanto às tradicionalmente sacrossantas presunções da ciência, a forma como as ideologias usurparam o lugar ocupado por tradição pela religião – sublinha a crise em que o iluminismo se encontra. A objetividade, como geralmente tem sido atribuída às ciências “exatas”, demonstrou ser uma ilusão e, de fato, um ideal falso (Polanyi 1958:18). A estrutura objetivista impôs mutilações incapacitadoras à mente humana (p. 381). Assim, Polanyi (p.266) advoga o ponto de vista de que deveríamos, uma vez mais, reconhecer a crença como a fonte de todo conhecimento e adotar conscientemente uma “estrutura fiduciária”. “Toda verdade”, diz ele, é apenas o pólo externo da crença , e destruir a crença seria negar toda a verdade”. Polanyi então promove (p.266), como ponto de partida para a pesquisa cientifica, a máxima de Agostinho: nisi credideritis, non intelligitis (se não creres, não entenderás).
Dessa forma, Polanyi espera reequipar-nos com as faculdades de que séculos de pensamento critico nos ensinaram a desconfiar (p.381). Ele advoga a primazia do compromisso, do conhecimento “tácito” ou “pessoal” (cf. o título de seu livro) sobre o conhecimento “objetivo”, o conhecimento sem um sujeito conhecedor (Popper 1979:109). Um compromisso pode, naturalmente mudar; é possível converter-se de uma a outro. Mas a questão é que ninguém (e certamente não o cientista iluminista) está, deveras, completamente isento de um compromisso. Enquanto alguém viver e pensar dentro do padrão de um determinado paradigma, este lhe proverá a estrutura de plausibilidade de acordo com a qual toda a realidade é interpretada. O paradigma pode ser uma certa cosmovisão científica, ou uma religião, ou uma ideologia; em qualquer caso, a estrutura conceitual tem poderes interpretativos quase englobantes. Só quando se perde a fé em uma estrutura de plausibilidade percebe-se que seus poderes eram excessivos e ilusórios...
(Trecho do Livro "Missão Transformadora" de David Bosch)
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