C.S. Lewis (Cristianismo Puro e Simples)
A idéia de que
"estar enamorado" é o único motivo válido para permanecer casado é
totalmente contrária à idéia do matrimônio como um contrato ou mesmo como uma
promessa, Se tudo se resume ao amor, o ato da promessa nada lhe acrescenta; e,
assim, nem deveria ser feito. Uma coisa curiosa é que os próprios amantes, enquanto
permanecem apaixonados, sabem disso muito mais que os que só falam de amor.
Como observou Chesterton, os apaixonados têm a tendência natural de fazer
promessas um ao outro. As canções de amor do mundo inteiro estão repletas de
juras de fidelidade eterna. A lei cristã não exige do amor algo que é alheio à
sua natureza: exige apenas que os amantes levem a sério algo que a própria
paixão os impele a fazer.
E é evidente que
a promessa de ser fiel para sempre, que fiz quando estava apaixonado e porque o
estava, deve ser cumprida mesmo que deixe de estar. A promessa diz respeito a
ações, a coisas que posso fazer: ninguém pode fazer a promessa de ter um
determinado sentimento para sempre. Seria o mesmo que prometer nunca mais ter
dor de cabeça ou nunca mais ter fome. Pode-se perguntar, no entanto, qual o
sentido de manter unidas duas pessoas que não se amam mais. Existem várias
razões sociais bem fundamentadas para tanto: dar um lar para os filhos,
proteger a mulher (que provavelmente sacrificou a carreira pelo casamento) de
ser trocada por outra quando o marido se cansar dela. Existe, no entanto, um
outro motivo do qual estou bastante convencido, mesmo que o julgue difícil de
explicar.
E difícil porque
tanta gente não consegue se dar conta de que, mesmo que "B" seja
melhor que "C", talvez "A" seja melhor que ambos. As
pessoas gostam de raciocinar com os termos "bom" e "mau",
não com os termos "bom", "melhor" e "o melhor de
todos", e "ruim", "pior" e "o pior de
todos". Elas perguntam se você julga o patriotismo uma coisa boa; se você
responde que ele é muito melhor que o egoísmo dos indivíduos, mas bastante
inferior à caridade universal, e que deve ceder lugar a esta sempre que os dois
estiverem em conflito, elas acham sua resposta evasiva.
Perguntam o que
você acha dos duelos. Se você responde que é muito melhor um homem perdoar o
próximo que duelar com ele, mas que o duelo pode ser uma alternativa melhor que
uma inimizade eterna, expressa no esforço secreto de causar a ruína do
oponente, elas se queixam de que você não ofereceu uma resposta franca e
direta. Espero que ninguém cometa o mesmo erro com o que tenho a dizer agora. O
que chamamos de "estar apaixonado" é um estado maravilhoso e, sob
diversos aspectos, benéfico para nós. Ajuda-nos a ser mais generosos e
corajosos, abre nossos olhos não apenas para a beleza do objeto amado, mas para
toda a beleza, e subordina (especialmente no início) nossa sexualidade animal;
nesse sentido, o amor é o grande subjugador do desejo. Ninguém que tenha o uso
perfeito da razão negaria que estar apaixonado é melhor que a sensualidade
ordinária ou o frio egocentrismo. Mas, como eu disse antes, "a coisa mais
perigosa que podemos fazer é tomar um certo impulso de nossa natureza como
padrão a ser seguido custe o que custar".
Estar apaixonado
é muito bom, mas não é a melhor coisa do mundo. Existem muitas coisas abaixo,
mas também muitas outras acima disso. A paixão amorosa não pode ser a base de
uma vida inteira. E um sentimento nobre, mas, mesmo assim, é apenas um
sentimento. Não podemos nos fiar em que um sentimento vá conservar para sempre
sua intensidade total, ou mesmo que vá perdurar. O conhecimento perdura, como
também os princípios e os hábitos, mas os sentimentos vêm e vão.
E, o que quer
que as pessoas digam, a verdade é que o estado de paixão amorosa
normalmente não dura. Se o velho final dos contos de fadas: "E viveram felizes
para sempre", quisesse dizer que "pelos cinqüenta anos seguintes
sentiram-se atraídos um pelo outro como no dia anterior ao casamento",
estaria se referindo a algo que não acontece na realidade, que não pode
acontecer e que, mesmo que pudesse, seria pouquíssimo recomendável.
Quem conseguiria
viver nesse estado de excitação mesmo por cinco anos? Que seria do trabalho, do
apetite, do sono, das amizades? É claro, porém, que o fim da paixão amorosa não
significa o fim do amor. O amor nesse segundo sentido - distinto da
"paixão amorosa" - não é um mero sentimento. E uma unidade profunda,
mantida
pela vontade e
deliberadamente reforçada pelo hábito; é fortalecida ainda (no casamento
cristão) pela graça que ambos os cônjuges pedem a Deus e dele recebem. Eles podem
fruir desse amor um pelo outro mesmo nos momentos em que se desgostam, da mesma
forma que amamos a nós mesmos mesmo quando não gostamos da nossa pessoa.
Conseguem manter vivo esse amor mesmo nas situações em que, caso se
descuidassem, poderiam ficar "apaixonados" por outra pessoa. Foi a
"paixão amorosa" que primeiro os moveu a jurar fidelidade recíproca.
O amor sereno permite que cumpram o juramento. E através desse amor que a
máquina do casamento funciona: a paixão amorosa foi a fagulha que a pôs em funcionamento.
Se você discorda
de mim, é claro que vai dizer: "Ele não sabe do que está falando. Ele nem
é casado." Talvez você tenha razão. Antes de dizer isso, porém, tome o
cuidado de embasar seu julgamento nas coisas que você conhece por experiência
pessoal ou pela observação de seus amigos, e não em idéias derivadas de
romances ou de filmes. Isso não é tão fácil de fazer quanto as pessoas pensam.
Nossa experiência é preenchida pelas cores dos livros, peças de teatro e filmes
do cinema, e é necessário ter paciência para delas desentranhar e para separar
o que aprendemos da vida por nós mesmos.
As pessoas tiram
dos livros a idéia de que, se você casou com a pessoa certa, viverá
"apaixonado" para sempre. Como resultado, quando se dão conta de que
não é isso o que ocorre, chegam à conclusão de que cometeram um erro, o que
lhes daria o direito de mudar - não percebem que, da mesma forma que a antiga
paixão se desvaneceu, a nova também se desvanecerá. Nesse departamento da vida,
como em qualquer outro, a excitação é própria do início e não dura para sempre.
A emoção intensa que um garoto tem quando pensa em aprender a pilotar um avião
não sobrevive quando ele se junta à Força Aérea, onde realmente vai aprender o
que é voar. A palpitação de conhecer um lugar novo se esvai quando se passa a
morar lá. Acaso quero dizer que não devemos aprender a voar ou não devemos
morar num lugar aprazível? De jeito nenhum. Em ambos os casos, se você perseverar,
o arrepio da novidade, quando morre, é compensado por um interesse mais sereno
e duradouro. Além disso (e mal consigo lhe dizer o quanto isto é importante),
são exatamente as pessoas dispostas a sofrer a perda do frêmito inicial e a
acatar esse interesse mais sóbrio que têm maior probabilidade de encontrar
novas emoções em campos diferentes. O homem que aprendeu a voar e se tornou um
bom piloto subitamente descobre a música; o homem que se estabeleceu num local
idílico descobre a jardinagem.
Segundo me
parece, essa é uma pequena parte do que Cristo quis dizer quando afirmou que
nada pode viver realmente sem antes morrer. Simplesmente não vale a pena tentar
manter viva uma sensação forte e fugaz: é a pior coisa que podemos fazer. Deixe
o frisson ir embora — deixe-o morrer. Se você passar por esse período de
morte e penetrar na felicidade mais discreta que o segue, passará a viver num
mundo que a todo tempo lhe dará novas emoções. Mas, se fizer das emoções fortes
a sua dieta diária e tentar prolongá-las artificialmente, elas vão se tornar
cada vez mais fracas, cada vez mais raras, até você virar um velho entediado e
desiludido para o resto da vida. É por serem tão poucas as pessoas que entendem
isso que encontramos tantos homens e mulheres de meia-idade lamentando a
juventude perdida, na idade mesma em que novos horizontes deveriam
descortinar-se e novas portas deveriam abrir-se. E muito mais divertido
aprender a nadar que tentar resgatar incessantemente (e inutilmente) a sensação
da primeira vez que chapinhamos na água quando garotos.
Outra idéia que
apreendemos de romances e peças de teatro é que a paixão amorosa é algo
irresistível, algo que simplesmente "contraímos", como sarampo. Por
acreditar nisso, certas pessoas casadas largam tudo e se atiram a um novo amor
quando se sentem atraídas por alguém. Penso, porém, que essas paixões
irresistíveis são muito mais raras na vida real que nos livros, pelo menos
depois de chegarmos à idade adulta. Quando conhecemos uma pessoa bonita,
inteligente e bem-humorada, é claro que devemos, num certo sentido, admirar e amar
essas belas qualidades. Porém, não cabe a nós em boa medida julgar se esse amor
deve ou não dar lugar ao que chamamos de paixão amorosa? Sem dúvida, se nossa
cabeça está cheia de romances, peças e canções sentimentalistas, e nosso corpo
está cheio de álcool, vamos tender a transformar qualquer amor nesse tipo específico
de amor, da mesma forma que, se houver uma valeta junto à estrada num dia de
chuva, toda a água vai correr por ela, ou, se você estiver usando um par de
óculos de lentes azuis, tudo ficará azulado. A culpa será sua. Antes de deixar
a questão do divórcio, gostaria de esclarecer a distinção entre duas coisas que
geralmente se confundem. Uma delas é a concepção cristã de casamento; a outra,
completamente diferente, é se os cristãos, enquanto eleitores ou membros do
Parlamento, devem impor sua visão do casamento sobre o restante da comunidade,
incorporando essa visão às leis estatais que regem o divórcio. Um grande número
de pessoas parece pensar que, se você é cristão, deve tentar tornar o divórcio
difícil para todo o mundo. Eu não penso assim.
Pelo menos creio
que ficaria bastante zangado se os muçulmanos tentassem proibir que o restante
da população tomasse vinho. Minha opinião é que as Igrejas devem reconhecer
francamente que a maioria dos britânicos não são cristãos, e, portanto, não se
deve esperar que levem uma vida crista. Deve haver dois tipos distintos de casamento:
um governado pelo Estado, com regras aplicáveis a todos os cidadãos, e outro
governado pela Igreja, com regras que ela mesma aplica a seus membros. A
distinção entre os dois tipos deve ser bastante nítida, de tal forma que se
saiba sem sombra de dúvida quais casais são casados pela Igreja e quais não.
Isso já é o bastante a respeito
da doutrina cristã da indissolubilidade do casamento. Resta tratar de outra coisa,
ainda menos popular. As esposas cristãs fazem o voto de obedecer a seus
maridos. No casamento cristão, diz-se que os homens são a "cabeça".
Duas questões obviamente se levantam. (1) Por que a necessidade de uma "cabeça"
— por que não a igualdade? (2) Por que a "cabeça" deve ser o homem?
(1)A necessidade de uma cabeça
segue-se da idéia de que o casamento é permanente. E claro que, na medida em
que o marido e a esposa estão de acordo, a necessidade de um líder desaparece;
e gostaríamos que esse fosse o estado de coisas normal no casamento cristão.
Mas, quando existe um desacordo real, o que se deve fazer? Conversar sobre o
assunto, é claro; estou partindo da idéia de que tentatam fazer isso e mesmo assim
não conseguiram chegar a um acordo. O que fazer então? O casal não pode decidir
por votação, pois não existe maioria absoluta entre duas pessoas. Certamente,
uma das duas coisas pode acontecer: podem separar-se e cada um ir para o seu
lado, ou então uma das partes deve ter o poder de decisão. Se o casamento é
permanente, uma das duas partes deve, em última instância, ter o poder de
decidir a política familiar. Não se pode ter uma associação permanente sem uma
constituição.
(2)Se há a necessidade de um
líder, por que o homem? Em primeiro lugar, pergunto: existe uma vontade generalizada
de que isso caiba à mulher? Como eu disse, não sou casado, mas, pelo que vejo,
nem mesmo a mulher que quer ser a chefe de sua própria casa admira essa
situação quando a observa na casa ao lado.
Nessas circunstâncias, costuma
exclamar: "Pobre sr. X! Por que ele se deixa dominar por aquela mulherzinha
horrível? Isso está acima da minha compreensão." Também não penso que ela
fique lisonjeada quando alguém menciona o fato de ser ela a "cabeça".
Deve haver algo de anti-natural na proeminência das esposas sobre os maridos,
pois as próprias esposas ficam bastante envergonhadas disso e desprezam o marido
que se submete. Porém, há mais uma razão, e sobre ela falo francamente a partir
da minha condição de solteiro, pois pode ser vista melhor por quem está de fora
que por quem está dentro. As relações da família com o mundo exterior - o que
poderíamos chamar de política externa — devem depender, em última análise, do
homem, porque ele deve ser, e normalmente é, mais justo em relação às pessoas
de fora. A mulher luta prioritariamente pelos filhos e pelo marido contra o
resto do mundo. Naturalmente e, em certo sentido, quase com razão, as
necessidades deles são priorizadas em detrimento de todas as outras
necessidades.
A mulher é a curadora especial
dos interesses da família. A função do marido é garantir que essa predisposição
natural da mulher não chegue a predominar. Ele tem a última palavra para
proteger as outras pessoas do intenso patriotismo familiar da esposa. Se alguém
duvida de mim, deixe-me fazer uma pergunta simples. Se seu cachorro mordeu a
criança da casa ao lado, ou se seu filho machucou o cachorro do vizinho, com
quem você prefere tratar — com o chefe da família ou com a dona da casa? E, se
você é uma mulher casada, deixe-me fazer outra pergunta. Apesar de admirar seu
marido, você não diria que a falha principal dele está em não fazer valer os
direitos da família contra os dos vizinhos tão vigorosamente quanto você gostaria?
Não seria ele apaziguador demais?
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