log

log

sexta-feira, 24 de abril de 2015

AS CON­TRA­DI­ÇÕES DA PROSPERIDADE

Escrever sobre a teologia da pros­pe­ri­dade me deixou des­con­for­tá­vel e inquieto; não por achar o assunto irre­le­vante ou meu próprio tra­ta­mento dele imper­ti­nente, mas pela intuição de alguma con­tra­di­ção oculta que demorei quatro ou cinco dias para saber precisar.

A primeira coisa que me inquietou, e disso eu tinha cons­ci­ên­cia mesmo enquanto escrevia contra ela, foi ver o quanto a teologia da pros­pe­ri­dade é fácil de refutar. O tes­te­mu­nho da Bíblia como um todo e do Novo Tes­ta­mento em par­ti­cu­lar pesam irre­sis­ti­vel­mente contra todos os pres­su­pos­tos dessa doutrina e contra todas as suas con­clu­sões, com uma ênfase que espero ter sido capaz de pelo menos sugerir.

Mais difícil, e tenho pensado nisso nesses últimos dias, é explicar de que modo uma doutrina tão des­con­cer­tan­te­mente contrária ao espírito cristão (e uso a expressão no sentido de “espírito de Jesus”) alcançou a popu­la­ri­dade que alcançou dentro de tantas facções da igreja formal. Nada é mais avesso à postura do Filho do Homem, como apre­sen­tado nos evan­ge­lhos, do que a ganância proposta por homens, jus­ti­fi­cada em nome de Deus e usada como fer­ra­menta de manipulação.

Já foi observado que a teologia da pros­pe­ri­dade é mani­fes­ta­ção de um cris­ti­a­nismo este­li­o­na­tá­rio populista; tudo nela foi projetado para atingir, manipular e defraudar as camadas mais pobres da população com a promessa de riqueza. Todos querem ficar ricos, mas em geral são os pobres ingênuos o bastante para comprar a promessa da riqueza incon­di­ci­o­nal — e parecem tornar-se espe­ci­al­mente vul­ne­rá­veis à aquisição se a promessa vem embalada e adoçada com o discurso da devoção.


O que em geral deixamos de enxergar é que a teologia da pros­pe­ri­dade é apenas a versão menos sofis­ti­cada — e portanto mais honesta — de uma ideologia tão entra­nhada na postura da igreja ocidental que tornou-se em muitos sentidos indis­tin­guí­vel dela. Porque, numa igreja abso­lu­ta­mente rendida aos ideais do libe­ra­lismo econômico, todos querem ser ricos e não veem nada de errado nisso. Se de um lado as vítimas pobres da teologia da pros­pe­ri­dade perseguem a riqueza crendo que ela virá sem escalas da mão divina, os ricos e burgueses perseguem pre­ci­sa­mente a mesma riqueza — apenas recusam-se a rebaixar-se à ilusão ou à fé de que ela virá de Deus e não de sua própria per­for­mance.

Nós que con­de­na­mos a ima­tu­ri­dade do mecanismo toma-lá-dá-cá da teologia da pros­pe­ri­dade buscamos sem cessar o mesmo resultado por outros meios. A maioria de nós nem perde o seu tempo asso­ci­ando a riqueza a Deus; estamos ocupados demais per­se­guindo uma e ignorando o outro. Da expressão “teologia da pros­pe­ri­dade” os mais arti­cu­la­dos dentre nós sentem-se pre­pa­ra­dos para invalidar a parte da teologia, mas nosso modo de vida endossa sem equívoco a parte da pros­pe­ri­dade.

Dito de outra forma, a teologia da pros­pe­ri­dade só alcançou pene­tra­ção entre os pobres porque a ideia sub­ja­cente — de que para um cristão ser rico é coisa honrosa, desejável e reverte em glória a Deus — estava há muito (digamos, desde a Reforma) presente na postura e nos discursos dos cristãos ricos e de classe média. Com nosso modo de vida for­ne­ce­mos o fim; a teologia da pros­pe­ri­dade limita-se a vender os meios.

Porque não há como esconder: grosso modo, há duas posturas na relação do ser humano com a riqueza. A primeira é acu­mu­la­tiva, e pressupõe iso­la­mento e escassez; a segunda é dis­tri­bu­tiva, e pressupõe comunhão e abun­dân­cia. Se enxer­ga­mos com clareza a mes­qui­nha­ria dos que seguem e propõem a teologia da pros­pe­ri­dade, não temos como negar que nossa postura é pelo menos tãoacu­mu­la­tiva quanto a deles. Os cristãos mais ricos fornecem o modelo elitista e dinhei­rista que a teologia da pros­pe­ri­dade vem oferecer aos mais pobres.

Em con­for­mi­dade com isso, há duas maneiras de se ler o Novo Tes­ta­mento; a primeira finge encontrar nele jus­ti­fi­ca­tiva para o modo acu­mu­la­tivo de viver e de lidar com a riqueza. Sua moda­li­dade mais comum enfatiza a sabedoria e a soberania de Deus. Quem é rico, sustenta essa visão de mundo, não deve abso­lu­ta­mente sentir-se culpado por não par­ti­ci­par da miséria do mundo; ao contrário, quem acontece de estar rico foi agraciado pelo favor inson­dá­vel de Deus e incorre em grave erro se sentir-se inclinado a repartir o que tem. A tentação de abrir mão dos pri­vi­lé­gios da riqueza equivale à tentação de resistir à vontade de Deus.


Segundo essa linha de pen­sa­mento, nenhum pri­vi­lé­gio é injusto, porque são todos patro­ci­na­dos pela soberania divina. Em vista disso, não cabe aos ricos assumir uma postura dis­tri­bu­tiva em relação à riqueza1, porque isso denotaria falta de fé na divina capa­ci­dade de trans­for­mar o mal em bem. Não sabemos os motivos da miséria do mundo, mas não devemos duvidar da bondade divina. É portanto por razões de devoção e fé, sustentam esses pro­po­nen­tes da pros­pe­ri­dade cal­vi­nista, que é neces­sá­rio abrir mão de qualquer tentativa de corrigir o mundo. Mudar o mundo é, na verdade, rebeldia contra a divindade. Talvez pareça injusto que você seja rico e o seu próximo pobre, mas quem é você para julgar? Quem é você para ques­ti­o­nar a soberania divina, que esta­be­le­ceu a distinção em primeiro lugar?

Em absoluto contraste com esse pen­sa­mento, o modo genuíno de se ler o Novo Tes­ta­mento é encon­trando nele um apelo constante e incon­tor­ná­vel para que abracemos um modo dis­tri­bu­tivode lidar com a riqueza. Assim falaram os profetas antes dele (“reparta o seu pão com o faminto, e cubra ao nu com vestido”), assim falou João Batista (“quem tiver duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma”), assim falou Jesus (“tive fome e não me destes de comer”), assim fizeram os pioneiros do reino no livro de Atos (“tinham tudo em comum; e vendiam suas pro­pri­e­da­des e bens e os repartiam por todos, segundo a neces­si­dade de cada um”). Em cada caso e em todos os casos, a posição neo-testamentária com relação à riqueza é dis­tri­bu­tiva; que no Novo Tes­ta­mento essa dis­tri­bui­ção seja volun­tá­ria apenas contribui para confirmar a sua centralidade.

Seme­lhan­te­mente, no Novo Tes­ta­mento o impulso de reformar a sociedade não é jamais visto como rebeldia contra a vontade de Deus. Ao contrário; como vimos há pouco, o sentido mais essencial de “arre­pen­di­mento” em Lucas/Atos é o de abraçar a vocação de mudar o mundo, no sentido de corrigir suas injus­ti­ças e anular os seus meca­nis­mos de exclusão e de mani­pu­la­ção. A vocação do reino está em que somos enviados para corrigir a miséria do mundo com a mesma paixão que Jesus mostrou-se disposto a corrigir a nossa: esvaziando-se, repartindo-se, distribuindo-se — de modo a estar sempre conosco na mesa universal. Nossa con­for­mi­dade com o espírito de Jesus cor­res­ponde rigo­ro­sa­mente à nossa dis­po­si­ção em seguir o trajeto dele em direção à gene­ro­si­dade e à pobreza. O Apóstolo disse-o da seguinte forma:

Vocês, que destacam-se em tudo, vejam que passem também a destacar-se na gene­ro­si­dade. Pois vocês conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, por amor de vocês se fez pobre, para que pela sua pobreza fossem enriquecidos.

O que encon­tra­mos nesse “enri­que­ci­dos” diz abso­lu­ta­mente tudo sobre nós.


Nenhum comentário:

Postar um comentário