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quarta-feira, 15 de abril de 2015

O Magnificat: a teologia de Maria

De todos os hinos que aparecem no Novo Testamento, nenhum reflete com tanta precisão as aspirações messiânicas do povo de Israel no tempo em que Jesus Cristo nasceu como o Magnificat (1). São aspirações de libertação da opressão imperial à qual esse povo estava submetido ao longo de sua história e que, nesse momento, vivia sob o jugo de Roma, representado na Palestina pelo rei Herodes, o Grande. Maria, uma humilde jovem virgem de Nazaré, provavelmente ainda adolescente, escutou o anúncio do anjo Gabriel. É um anúncio transcendental, segundo o qual ela ficaria grávida e daria à luz um filho que será chamado Jesus, em quem se cumprirão as profecias do Antigo Testamento em relação ao Messias: “O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim” (Lc 1.33). Submissa, Maria acata a vontade de Deus —“Sou serva do Senhor; que aconteça comigo conforme a tua palavra” (v.35) — e em poucos dias viaja até a Judeia para visitar sua parente Isabel, esposa do sacerdote Zacarias, em sua casa. É ali onde a bem-aventurada futura mãe se expressa em um cântico que abunda ecos do Antigo Testamento, o que, desde sua perspectiva, significa o cumprimento do anúncio angelical não apenas para ela mas também para seu povo e para toda a raça humana.
O Magnificat, em Lucas 1.46-54, é parte dos dois capítulos cujo conteúdo só aparece no terceiro Evangelho e que tem a ver com a infância de Jesus Cristo. Neste cântico, aparecem vários dos temas que ocupam um lugar privilegiado na narração da vida de Jesus no “Evangelho dos pobres”, como foi denominado o de Lucas, “o médico amado”. O poema se divide em duas estrofes: na primeira estrofe (vv.46-50), o foco está em Maria e enfatiza a ação de Deus como o Deus que cumpre seu propósito redentor em benefício de uma humilde serva; a segunda estrofe (vv.51-54) amplia o foco do pessoal para o corporativo e destaca a ação de Deus como o Deus que estabelece justiça. Em todo o poema o sujeito da ação é Deus — o Deus que ao longo da história utiliza seu poder para fazer misericórdia e justiça em favor dos pobres e que, como tal, é digno do louvor com o qual se inicia o cântico de Maria.
O Deus de misericórdia
Para começar, Maria rende tributo ao Senhor como Deus, o Salvador (v.46), utilizando assim a linguagem que aparece em várias passagens do Antigo Testamento. Logo, o tópico seguinte (vv.47-50) descreve a maneira como esse seu Deus realiza a salvação. O que ela destaca é que em seu caso Deus condescendeu prestar atenção em sua humilde serva e utilizou seu poder para fazer grandes coisas por ela. A única explicação para que ela fosse escolhida para ser a mãe do Messias é a misericórdia de Deus. Para esse fim, Deus teria podido escolher uma mulher da nobreza, uma das filhas de Herodes o Grande ou de Anás ou Caifás. Por sua misericórdia, entretanto, elegeu uma mulher, diríamos hoje, da classe trabalhadora; não de Jerusalém, a cidade do Rei Davi, mas de uma pequena cidade galileia da qual Natanael diria posteriormente: “Nazaré? Pode vir alguma coisa boa de lá?” (Jo 1.46). A futura mãe de Jesus se sente devedora de Deus por sua misericórdia, e esse reconhecimento leva-a a magnificar a Deus.
Maria refere-se a si mesma como humilde serva, e como tal a receptora da misericórdia de Deus. Reconhece que Deus usou seu poder (é Poderoso) para lhe beneficiar. Ao mesmo tempo, sabe que ao longo da história (de geração em geração) essa misericórdia se estende igualmente aos que o temem, ou seja, aos que não se orgulham do que são ou do que têm, mas dão a Deus o lugar que lhe corresponde, especialmente os de condição humilde, como ela. Deus se deleita em exaltar os humildes: os pobres, os fracos, os desprezados, os marginalizados, os representados pela tríade clássica que aparece no Antigo Testamento — os órfãos, as viúvas, os estrangeiros. E essa é um segundo motivo para louvar a Deus.
O Deus de justiça
Repetidamente o Antigo Testamento afirma que Deus é justo, ama a justiça e exige justiça. Cabe destacar, entretanto, que falar da justiça de Deus não é falar de uma qualidade abstrata que o caracteriza. É, antes, afirmar que porque Deus é justo, ele se coloca ao lado das vítimas da injustiça e age contra aqueles que perpetram a injustiça. Seu propósito para a vida humana, sem distinções nem favoritismos, é shalom, vida em abundância, que é fruto da justiça (ver Is 32.17). Sua ação, portanto, se orienta a restaurar ou vindicar os que sofrem injustiça e instituir assim a equidade.
Em linha com este propósito de Deus, o Antigo Testamento vislumbra o advento do Messias, o ungido de Deus que vem para estabelecer seu reinado de justiça. Como já temos visto, no anúncio do nascimento de Jesus o anjo Gabriel comunica à Maria que ao seu filho “O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim” (Lc 1.32, 33). A segunda estrofe do Magnificat (vv. 51-55) passa do pessoal ao corporativo e põe em relevo a relação que há entre o cumprimento desse anúncio angelical relativo ao advento do Messias, por um lado, e o estabelecimento da justiça, por outro lado. A misericórdia que favorece a serva humilde, segundo a primeira estrofe, se estende aos humildes (v. 52), aos famintos (v. 53), à Israel e a descendência de Abraão (v. 54), na segunda. É a misericórdia de Deus em ação para estabelecer a justiça e portanto favorecer a estes, e ao mesmo tempo desfavorecer os soberbos (v. 51), os poderosos (v. 52) e os ricos (v. 53).
A narrativa da vida e do ministério de Jesus ao longo de todo o Evangelho de Lucas mostra o marcado contraste entre dois grupos de pessoas. Um grupo está constituído por gente humilde — as grandes multidões [que] seguiam a Jesus (Lc 14.15) e que em algum momento queriam declará-lo rei à força (Jo 6.15). Outro grupo é formado pelos soberbos, poderosos e ricos que se opõem à Jesus, buscam posições de poder e riqueza, e desprezam os pobres. Em seu sermão inaugural na sinagoga de Nazaré Jesus não deixa dúvidas quanto ao propósito do seu ministério: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor (Lc 4.18, 19). Jesus é o Messias ungido por Deus para estabelecer o reinado em que se cumprirá o que Deus espera de ti: praticar a justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com o seu Deus (Mq 6.8).
Conclusão
Os verbos no Magnificat apontam para ações realizadas por Deus no passado como o Deus de misericórdia e justiça: “realizou poderosos feitos” e “dispersou os soberbos” (v.51), “derrubou governantes” e “exaltou os humildes” (v.52), “encheu de coisas boas os famintos” e “despediu de mãos vazias os ricos” (v.53), “ajudou ao seu servo Israel” e “lembrou-se da sua misericórdia” (v.54). Isto abriria oportunidade para uma interpretação referida à ação de Deus no passado. Entretanto, o cântico de Maria se dá no contexto judaico de expectativa messiânica em que prevalece a esperança escatológica de uma nova ordem socioeconômica e política instituída pelo Ungido de Deus. O que este cântico afirma é que o nascimento de Jesus Cristo é o preâmbulo do já do Reino de Deus que está a ponto de se fazer presente na história por meio de sua pessoa e obra, mesmo que ainda não em sua plenitude. É, assim, um convite a fazer da teologia de Maria um modelo de teologia “histórica, dinâmica, profética” que, como disse Valdir Steuernagel, “cumpre o papel de ser memória da ação de Deus ontem, discerne sua intervenção hoje e se sabe a serviço do amanhã de Deus”.
Nota 
[1] O título do cântico de Maria em Lucas 1.46-55 deriva-se da palavra com a qual se inicia o cântico na versão latina traduzida do grego do original: Magnifica no sentido de “Engrandece”.

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