Por Jonh Stott
Em João 10.1-16 Jesus descreve a essência do seu próprio ministério e como deveria ser o nosso. O bom pastor, que modela o seu ministério pelo do Bom Pastor, tem pelo menos sete características.
Primeiro, o bom pastor conhece as suas ovelhas. Ele "chama pelos nomes as suas próprias ovelhas... Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim, assim como o Pai me conhece a mim e eu conheço o Pai."[1] Naturalmente, o antigo pastor oriental era, em muitos aspectos, diferente dos pastores modernos em outras partes do mundo. A principal diferença consiste em se as ovelhas são destinadas para lã ou para corte. Já que hoje em dia a maioria delas é criada para o consumo, elas vivem por pouco tempo, não desenvolvendo, portanto, um relacionamento pessoal com o fazendeiro ou com o guardador de ovelhas. Na Palestina, porém, já que as ovelhas eram criadas para produzir lã, sendo tosquiadas de ano em ano, o pastor as mantinha sob seus cuidados durante muitos anos e entre eles se desenvolvia um relacionamento de confiança e intimidade. O pastor sabia até o nome de cada uma delas e as chamava pelo nome.
Era esta certamente a relação existente entre Jesus e seus discípulos. Ele conhecia pessoalmente as suas ovelhas. Assim como no Antigo Testamento Javé chamava Abraão, Moisés, Samuel e outros pelo nome, assim Jesus conhecia e chamava as pessoas individualmente. Quando ele viu Natanael se aproximando e lhe disse: "Eis um verdadeiro israelita em quem não há dolo!", Natanael perguntou-lhe, atónito: "Donde me conheces?"[2] Mais adiante, Jesus chama Zaqueu pelo nome para que desça do sicômoro onde havia se escondido. E, após a sua ascenção, ele chamou Saulo de Tarso pelo nome, na estrada de Damasco.[3] E mesmo que, ao nos convertermos, não tenhamos escutado nenhuma voz audível, nós também podemos dizer que ele nos chamou pessoalmente.
Talvez a primeira característica (aliás, a mais básica) dos subpastores de Cristo seja o relacionamento pessoal que se deve desenvolver entre o pastor e as pessoas. Elas não são clientes nossos, nem nossos eleitores, pacientes ou fregueses. E muitos menos são meros nomes guardados em registro ou, pior ainda, números de um arquivo de computador. São indivíduos, pessoas que nós conhecemos e que nos conhecem. Além do mais, cada uma tem um nome próprio, símbolo de sua unicidade e identidade; portanto, todo pastor de verdade deveria tentar lembrar o nome delas. Anos atrás, eu tinha dificuldade de lembrar os nomes de duas senhoras idosas que vinham juntas a nossa igreja todo domingo. Assim, ao cumprimentá-las após os cultos, o máximo que eu conseguia era dirígir-me a elas como "vocês duas". Aquilo acabou virando uma piada entre nós... Acontece que, justamente naquela época, havia considerável publicidade em torno da derrubada, pela União Soviética, do avião americano de vigilância "U2". Imaginem o meu embaraço quando as duas senhoras em questão começaram a assinar "U2" (cuja pronúncia, em inglês, é a mesma que "vocês duas", "you two")! "Saúda aos amigos, nome por nome", escreveu João.[4]
Que passos se podem tomar para superar uma memória fraca? Eu encontrei dois jeitinhos bastante úteis. Primeiro, é inútil perguntar às pessoas o nome delas sem que antes identifiquemos o seu rosto, pois daí a pouco teremos flutuando em volta de nossa mente numerosos nomes, sem nenhum rosto associado a eles. Nesta situação estaríamos seguindo o famoso W. A. Spooner, que, segundo se conta, abordou alguém em uma festa com as seguintes palavras: "Eu conheço tão bem o seu nome! Só não consigo me lembrar do seu rosto!" Ao invés disso, o mais sábio é memorizar primeiro o rosto; então se está pronto para descobrir o nome certo para associar a ele.
A segunda forma de lembrar o nome das pessoas é escrevendo-os e orando por eles. Quando Paulo disse aos tessalonicenses: "Damos sempre graças a Deus por todos vós, mencionando-os em nossas orações",[5] até parece que ele tinha algum tipo de lista. É, sem dúvida, o fato de mencionarmos regularmente o nome das pessoas em oração que (com muito mais certeza e rapidez do que de outra maneira) fixa esses nomes em nossa mente e memória. Quer queiramos ou não, esquecer o nome de alguém é um sinal de nossa falta de oração como pastores.
Jesus indicou também que o seu relacionamento com o seu povo seria recíproco ("Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim")[6] e, ao mesmo tempo, íntimo ("assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai").[7] Havia em Jesus algo de transparentemente franco e sincero. Ele não tinha nada a esconder. Ele mesmo disse que uma marca de sua verdadeira amizade era o fato de ter-se dado a conhecer aos seus discípulos.[8] Obviamente, isto não significa que os pastores precisam revelar todos os seus segredos à congregação; mas pelo menos eles deveriam estar dispostos a dar o passo difícil e humilhante de abrir mão de um pouco de sua privacidade e de se deixar conhecer como seres humanos tão frágeis e vulneráveis quanto qualquer outra pessoa.
Ao mesmo tempo, em algumas culturas, dizer nome aos outros ou chamar as pessoas pelo nome pode ser um ato de muita arrogância e até mesmo presunção, pois o nosso nome simboliza a nossa identidade pessoal e privada. Vincent Donovan descobriu isto quando foi trabalhar entre os masai, na Tanzânia. No começo, ele escreve, "eu agia muito naturalmente a partir do meu contexto americano, e não via nada de errado em dizer o meu nome e perguntar o nome deles." Ele foi advertido, porém, de que os masai consideravam isso uma falta de educação. Em público e com estranhos, eles usavam títulos ou designações, e não nomes. Um dia um masai lhe disse: "Não fique jogando meu nome por aí. Meu nome é importante. Meu nome sou eu. Meu nome é para os meus amigos."[9] Assim, quando Vincent Donovan mudou-se para uma nova área, adotou o costume de não saber ou não revelar os nomes uns dos outros. Então, "depois de trabalhar entre eles por um longo período de tempo, e talvez como um presente de despedida para mim, um dos anciãos me disse o seu nome e eu lhe disse o meu. Eu me senti lisonjeado com a troca. 'Meu nome é para meus amigos.' "[10] Eu acho que seria bom se no Ocidente também se cultivasse algo assim quanto às pessoas e seus nomes. Divulgar o nosso nome e descobrir o de outra pessoa não e algo que se faça assim à toa; afinal, fazê-lo é reivindicar uma intimidade de relacionamento que pode acontecer, porém, na família de Deus.
Em segundo lugar, o bom pastor serve as suas ovelhas. "Eu sou o bom pastor", disse Jesus. "O bom pastor dá a vida pelas ovelhas."[11] Ele se dedica ao bem-estar delas e toda a sua vida é dominada pelas necessidades delas. A principal reclamação de Deus contra os líderes de Israel era esta: "Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Não apascentarão os pastores as ovelhas?".[12] Agora, ovelha não é exatamente um animal agradável. Nós alimentamos uma imagem muito romântica das ovelhas, como bichos fofinhos e peludos. Mas as ovelhas, em seu estado natural, não têm a mínima preocupação com sua limpeza e são afligidas por um monte de pestes nojentas. Daí a necessidade de enfiá-las várias vezes por ano em fortes soluções químicas. Outra coisa é que elas têm fama de serem obtusas. Portanto, para ser pastor de ovelhas, é preciso lidar com um bocado de sujeira e trabalho baixo. Outra coisa necessária é fortalecer as que são fracas, curar as doentes, atar as feridas das que estão machucadas e buscar as que se encontram extraviadas.[13]
Jesus mesmo deu a vida pelas suas ovelhas. Não agiu como um empregado ou um mercenário, que faz o trabalho por dinheiro. Ele cuidou delas genuinamente, a ponto de morrer por elas. Seu grande amor se revelou em sacrifício e serviço, sacrificando a si mesmo para servir aos outros. É desse amor sacrificial, que serve, que os pastores precisam hoje, pois muitas vezes os seres humanos, assim como as ovelhas, podem ser "perversos e tolos", desviando-se do caminho. Alguns são também exigentes e mal-agradecidos, sendo-nos difícil amá-los. Mas aí precisamos lembrar que eles são rebanho de Deus, comprados com o sangue de Cristo e confiados a nossos cuidados pelo Espírito Santo.[14] E se as três pessoas da Trindade estão comprometidas com o bem-estar dessas pessoas, por que nós não faríamos o mesmo? Precisamos ouvir as palavras de Cristo para nós assim como Richard Baxter as imaginou: "Eu morri por elas; e tu, por que não irias buscá-las? Elas foram dignas do meu sangue; por que não seriam dignas do teu trabalho? ... Eu fiz e sofri tanto por sua salvação, e me dispus a fazer de ti um cooperador meu; e tu, por que te negas a fazer o pouquinho que está em tuas mãos?"[15]
Em terceiro lugar, o bom pastor guia as suas ovelhas. Eis aqui uma outra diferença entre as ovelhas orientais e as ocidentais. No Ocidente, os pastores raramente guiam as suas ovelhas (se é que o fazem alguma vez); eles vão atrás delas, dirigindo-as com o auxílio de cães pastores treinados. Já o pastor palestino, devido ao íntimo relacionamento que mantém com suas ovelhas, consegue caminhar à frente delas, chamando-as, às vezes assobiando ou tocando uma flauta, e elas o seguem. Chua Wee Hian, ex-Secretário Geral da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (IFES), conta-nos, em seu livro Aprendendo a Liderar, sobre um guia árabe que estava explicando essa tradição a alguns turistas, quando eles "enxergaram, à distância, um homem dirigindo um pequeno rebanho de ovelhas com uma vara bastante ameaçadora". Mas, então, será que o guia estava enganado? "Ele imediatamente parou o ônibus e saiu correndo pelo campo. Poucos minutos depois ele retornava, com o rosto brilhando. 'Acabo de falar com aquele homem. Senhoras e senhores, ele não é um pastor. Na verdade ele é o açougueiro!'"[16]
A relação de Israel com Javé, e especialmente a passagem do povo pelo deserto, tem relação com o movimento das ovelhas que seguem o seu pastor: "Dá ouvidos, ó pastor de Israel, tu, que conduzes a José, como um rebanho."[17] O israelita temente a Deus via a Javé da mesma maneira: "O Senhor é meu pastor: nada me faltará... Leva-me para junto das águas de descanso...".[18] Assim, Jesus, o bom pastor, pegou essa mesma figura e a desenvolveu: "...as ovelhas ouvem a sua voz, ele chama pelos nomes as suas próprias ovelhas e as conduz para fora. Depois de fazer sair todas as que lhe pertencem, vai adiante delas, e elas o seguem porque lhe reconhecem a voz."[19] A recíproca é verdadeira. Se o bom pastor conhece as ovelhas pelos nomes, elas, por sua vez, também conhecem a sua voz. Os ouvidos dos cristãos são sintonizados com a voz de Cristo. Nós desenvolvemos uma certa sensibilidade para com a sua mente e vontade. Pouco a pouco vamos descobrindo e sabendo, instintivamente, o que é que agrada ou desagrada a ele. E assim seguimos aonde ele nos guia e por onde ele nos chama.
Com os pastores cristãos acontece algo parecido. É nossa solene responsabilidade guiar as pessoas de tal forma que seja seguro para elas seguirem a nós. Ou seja: temos de ser para elas um exemplo coerente e confiável. Convém lembrarmos que Jesus introduziu no mundo um novo estilo de liderança, a saber, a liderança pelo serviço e pelo exemplo, e não pela força. O apóstolo Pedro compreendeu isto e o ecoou em seus ensinos: "Pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós... não como dominadores dos que vos foram confiados, antes tornando-vos modelos do rebanho."[20] Com efeito, por bem ou por mal, quer gostemos ou não, as pessoas vão nos seguir. Dá até medo pensar em quanto muitas ovelhas são incapazes de discernir. É por isso que é essencial liderar bem, ser um bom exemplo, sem nenhuma dicotomia ‘
Em quarto lugar, o bom pastor alimenta as suas ovelhas. "Eu sou a porta", disse Jesus. "Se alguém entrar por mim, será salvo; entrará e sairá e achará pastagem."[21] A principal preocupação dos pastores sempre é que suas ovelhas tenham o suficiente para comer. Quer sejam ovelhas criadas para lã, quer sejam de corte, a saúde delas depende de terem pastagem nutritiva. Assim, o próprio Jesus, na qualidade de bom pastor, foi sobretudo um mestre. Ele alimentou os seus discípulos com a boa comida da sua instrução.
Os pastores de hoje têm essa mesma tremenda responsabilidade. O ministro ordenado é essencialmente um ministro da Palavra, entendidos os sacramentos como "palavras visíveis" (como os chamava Agostinho), uma representação das promessas do evangelho. O pastor é, acima de tudo, um mestre. Esta é a razão para duas qualidades de um presbítero explicitadas nas Epístolas Pastorais. Primeiro, o candidato deve ser "apto para ensinar".[22] Segundo, ele deve ser "apegado à palavra fiel que é segundo a doutrina, de modo que tenha poder, assim para exortar pelo reto ensino como para convencer os que a contradizem."[23] Estas duas qualificações andam juntas. O pastor deve ser fiel ao ensino apostólico (didache) e, ao mesmo tempo, ter o dom de ensiná-lo (didaktikos). E, quer estejam ensinando a uma multidão ou a uma congregação, a um grupo ou a um só indivíduo (Jesus mesmo ensinou nestes três contextos), o que distingue o seu trabalho pastoral é que este é sempre um ministério da Palavra.
Seja nas igrejas cansadas do Ocidente ou nas vibrantes igrejas de muitos países do Terceiro Mundo, nada é mais necessário, hoje, do que uma exposição fiel e sistemática da Escritura no púlpito. "Tu me amas?", Jesus perguntou a Pedro. Então, "apascenta as minhas ovelhas".[24] E demais o número de congregações que estão enfermas e até mesmo morrendo de fome por falta do "alimento sólido"[25] da Palavra de Deus. Na verdade, o objetivo supremo de nosso ministério pastoral é duplo: "apresentar todo homem perfeito (ou melhor, 'maduro') em Cristo"[26] e "aperfeiçoar os santos para o desempenho do seu serviço" (ou melhor, 'para a sua obra de ministério')".[27] Seria difícil imaginar uma ambição mais nobre do que, pelo nosso ministério do ensino, guiar o povo de Deus, tanto à maturidade quanto ao ministério.
Mas, então, como é que os pastores alimentam as suas ovelhas? Estritamente falando, eles não fazem absolutamente nada. Para falar a verdade, quando uma ovelhinha recém-nascida está doente, pode ser que o pastor a tome nos braços e a trate com mamadeira. Mas normalmente o que o pastor faz é guiar o seu rebanho até "bons pastos" ou "boa pastagem",[28] onde elas possam pastar e assim alimentar-se sozinhas. Acho razoável considerarmos isto uma parábola de uma boa educação pastoral. Dar comida na boca ou alimentar com mamadeira é coisa para bebês em Cristo. Só ensinando-os a se alimentarem nos pastos é que os conduziremos à maturidade em Cristo. Quando o pregador abre a Escritura, ele convida as pessoas a se aproximarem dela, a fim de que possam alimentar-se de sua rica pastagem.
Em quinto lugar, o bom pastor controla as suas ovelhas, admitindo que tem sobre elas uma certa autoridade. Eu sou tentado a omitir esta dimensão; mas fazê-lo seria falta de integridade. Lesslie Newbigin, em seu livro O Bom Pastor, está certo ao reclamar que "a figura do bom pastor tem sido sentimentalizada".[29] Em grego clássico, o rei era conhecido como "o pastor" de seu povo; essa analogia do rei-pastor ocorre com bastante frequência no Antigo Testamento. Por exemplo, o povo lembrou a Davi de como Deus lhe havia dito: "Tu apascentarás o meu povo de Israel, e serás chefe sobre Israel".[30] Mais tarde, o verbo grego poimaino, que significa "pastorear um rebanho", passou a significar domínio rígido: "Com vara de ferro a regerás (LXX poimaino)".[31] Claramente, nós não temos liberdade alguma, nem para deduzir a partir disso que os pastores de igrejas precisem ser burocratas, nem para justificar o conceito medieval do bispo-piríncipe. De jeito nenhum. Termos relativos à realeza ("palácios", "tronos" e "reinos") são inteiramente inadequados se aplicados ao bispo-presbítero da Bíblia. Não obstante, juntamente com a ênfase neotestamentaria sobre o serviço humilde dos presbíteros existem também alusões ao seu papel de liderança, ao fato de "presidirem" uma igreja local "no Senhor"[32] e à necessidade de se "obedecer" a eles e "submeter-se" a eles,[33] se bem que a sua autoridade deva ser exercida através do seu ministério da Palavra e do seu exemplo.[34] E diversas passagens do Novo Testamento deixam muito claro que, se for necessário exercer disciplina, isto deve ser feito coletivamente, através da congregação local, e não através de um único pastor.[35]
Em sexto lugar, o bom pastor guarda as suas ovelhas. O maior inimigo das ovelhas na antiga Palestina era o lobo, selvagem e predatório, quer viesse como caçador solitário, quer fosse em bandos. Contra ele as ovelhas eram indefesas. Se o pastor era apenas um mercenário, pago por seus serviços, ao ver a aproximação do lobo ele abandonava as ovelhas e fugia, deixando o lobo atacar e dispersar o rebanho.[36] Somente um bom pastor iria ficar, arriscando a própria vida para defender e recuperar as suas ovelhas.
Interpretar a alegoria de Jesus não é nada difícil. "Acautelai-vos dos falsos profetas", disse ele em outro lugar. Eles "se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores."[37] Se as ovelhas são o povo de Deus e os guardadores são os seus fiéis pastores, então os lobos são os falsos mestres e os mercenários são pastores infiéis, que nada fazem para proteger o povo de Deus de erros. Infelizmente, ainda hoje existem lobos no rebanho de Cristo, enganadores que negam certos fundamentos da fé cristã histórica. Quem é pastor de verdade não se comporta como mercenário, fugindo do perigo. Ele enfrenta os lobos. E uma tarefa penosa. Afinal de contas, um pastor de ovelhas não espanta os lobos simplesmente com um tiro ou gesticulando para expulsá-los. Ele tem que partir para cima deles e enfrentá-los, como o jovem Davi fez com o leão e o urso.[38] O pastor da igreja, de igual maneira, precisa enfrentar a dor e o perigo de combater de perto os falsos mestres. Não bastam denúncias vagas. Pelo contrário, necessitamos estudar sua literatura, ouvir o que eles ensinam e combater as questões que eles levantam, a fim de rebater com eficiência os seus argumentos em nosso ensinamento.
Mas, se este é um ministério arriscado, ele é também um ministério necessário e compassivo. Nós nunca deveríamos apreciar a controvérsia. Ela não pode passar, para nós, de um dever de desagradável sabor. A única razão para nos envolvermos nele é a nossa compaixão pelas ovelhas. O mercenário foge porque "não tem cuidado com as ovelhas".[39] Somente o fato de preocupar-se com as ovelhas e de se importar profundamente com o bem-estar do povo a quem ele serve é que leva um bom pastor a buscar graça e coragem para enfrentar os desvios na igreja. Ovelha sem pastor é uma presa fácil para os lobos. Por que deixar que digam sobre o rebanho de Deus hoje que "se espalharam por não haver pastor, e se tornaram pasto para todas as feras do campo"?[40] Pelo contrário, se nós realmente nos preocupamos com eles, seremos vigilantes e "guardaremos os nossos rebanhos", como aqueles pastores nos campos perto de Belém. Na verdade, às vezes se diz que sempre devemos ser positivos em nosso ensino, nunca negativos. Mas não é bem assim. O próprio Jesus se opôs aos falsos mestres. E o dever de um pastor não consiste apenas em ensinar "a sã doutrina", mas também em "convencer os que contradizem".[41] Alimentar as ovelhas e afugentar os lobos não podem ser tarefas isoladas uma da outra.
Em sétimo lugar, o bom pastor busca as suas ovelhas. "Ainda tenho outras ovelhas", disse Jesus, "não deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então haverá um rebanho e um pastor."[42] Esta alusão às "outras ovelhas" deixa claro que Jesus estava se referindo aos gentios. Mas ele também disse "Eu tenho" e "a mim me convém conduzi-las". Essa mesma segurança nós precisamos ter ao evangelizarmos. Onde quer que vivamos ou trabalhemos, devemos estar certos de que ali se encontram algumas das "outras ovelhas" de Cristo, que elas já lhe pertencem no propósito de Deus e que ele está decidido a ir buscá-las e conduzi-las ao rebanho.
Esta tarefa de ir em busca daqueles que estão alienados e perdidos é uma parte essencial do ministério pastoral, se bem que ela seja muito mais entregue aos membros leigos da igreja que vivem e trabalham entre aqueles. E verdade que nós costumamos estabelecer uma distinção entre "evangelistas", que buscam ovelhas perdidas, e "pastores", que nutrem aquelas que foram achadas. No entanto, estes são ministérios que se sobrepõem. Se Jesus, o bom pastor, não somente alimenta as ovelhas que se encontram no rebanho, como também busca aquelas que estão distantes,[43] seus subpastores e imitadores devem fazer o mesmo. Na cerimônia de ordenação da Igreja Anglicana o dirigente exorta os candidatos a que vão "buscar as ovelhas de Cristo que se encontram dispersas... a fim de que sejam salvas por Cristo para sempre". Se nós nos evadíssemos dessa responsabilidade, Deus haveria de queixar-se mais uma vez: "Minhas ovelhas... andam espalhadas por toda a terra, sem haver quem as procure, ou quem as busque".[44] E o próprio Jesus haveria de nos dizer: "Eu desci do céu à terra para buscar e salvar o que se havia perdido. E tu, por que não vais ao teu vizinho ou à rua ou vila mais próxima para buscá-los?"[45] Mas se, pelo contrário, nós sairmos em busca das pessoas, haveremos de participar do regozijo celestial "por um pecador que se arrepende".[46]
Eis aqui, portanto, a belíssima idéia de ministério pastoral retratada por Jesus. Onde quer que haja ovelhas, sejam elas perdidas ou achadas, existe a necessidade de pastores que vão buscá-las e pastoreá-las. Seguindo o exemplo do próprio bom pastor, os pastores humanos irão esforçar-se por conhecer e servir, guiar, alimentar e governar as ovelhas do rebanho de Cristo, protegê-las dos lobos saqueadores e buscá-las quando se extraviarem. E depois, por menor que seja o reconhecimento, apreciação ou honra que eles recebam (ou que gostariam de ter recebido) aqui na terra, eles hão de receber do Supremo Pastor, quando este se manifestar, "a imarcessível coroa da glória".[47]
O ideal de pastor exemplificado em Jesus, o bom pastor, e que ele gostaria que os líderes imitassem, precisa ser complementado por dois outros modelos que eles os advertiu a que evitassem. Primeiro, disse ele, são os governantes seculares que "têm sob seu domínio" o povo e "exercem autoridade" sobre ele. "Mas entre vós não é assim", enfatizou a seguir. Na sua nova comunidade, a liderança deveria ser completamente diferente da liderança no mundo. "Pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva."[48] Como diz T. W. Manson, "no reino de Deus o serviço não é um degrau para a grandeza; ele é grandeza — o único tipo de grandeza que é reconhecido."[49] Em segundo lugar, Jesus exortou seus discípulos a que não imitassem os fariseus. Estes apreciavam os lugares de honra (nos banquetes e nas sinagogas) e os títulos de honra, pois estes eram sinais do respeito prestado pelo povo. "Não façam como eles", Jesus disse. Os líderes cristãos não devem ser chamados de "Rabi" (professor), "Pai" ou "Mestre". Isto é, não devemos adotar em relação a qualquer ser humano na igreja, nem permitir que outros o façam em relação a nós, uma atitude de dependência e desamparo, como a de uma criança para com seu pai, nem de obediência servil, como a de um escravo para com o seu senhor, nem de aquiescência sem questionamentos, como a de um aluno para com seu professor. Segundo Jesus, isto seria usurpar as prerrogativas da Santa Trindade (Deus, nosso Pai, Jesus, nosso Mestre, e o Espírito Santo, nosso ensinador), como também romper o relacionamento entre irmãos e irmãs dentro da família cristã.[50]
Temos aqui dois diferentes modelos contemporâneos de liderança — um secular (os governadores) e o outro religioso (os fariseus) — que, não obstante, compartilhavam a mesma característica básica, a sede de poder e prestígio. Hoje, o modelo mais parecido que temos a imitar é o da gerência de negócios. Este também, apesar de alguns paralelos aceitáveis, geralmente é mais mundano do que cristão. Com o crescente declínio do status dos pastores na sociedade, nós precisamos cuidar para não procurarmos compensar este fato buscando mais poder e mais honra na igreja. A marca essencial da liderança cristã é a humildade, não a autoridade; serviço e não senhorio; e também "a mansidão e benignidade de Cristo".[51]
A última palavra, quero deixá-la com Chuck Colson, que provou pessoalmente, antes de converter-se a Cristo, o intoxicador vinho do poder: "A sedução do poder pode separar o mais decidido dos cristãos da verdadeira natureza da liderança cristã, que é servir aos outros. É difícil colocar-se num pedestal e lavar os pés de quem está embaixo."[52] E ele acrescenta: "Nada distingue mais os reinos do homem do reino de Deus do que as suas visões diametralmente opostas quanto ao exercício do poder. Um procura controlar as pessoas, o outro busca servir a elas; um promove o ego, o outro abate o ego; um busca prestígio e posição, o outro eleva o humilde e o desprezado."[53]
[1] Jo 10.3, 14-15
[2] Jo 1.47-48
[3] Lc 19.5; At 9.4
[4] 3 Jo 15
[5] 1 Ts 1.2
[6]
[7] Jo 10.15
[8] P. ex. Jo 14.21; 15.15
[9] Vincent J. Donovan, Christianity Rediscovered: An Epistlefrom the Masai (1978; SCM, 1982), p. 187.
[10] Ibid., p. 188
[11] Jo 10.11
[12] Ez 34.2. O equivalente no Novo Testamento é Judas 12, que fala em "pastores que a si mesmos se apascentam". Isto é, eles usam a sua posição para alimentar o seu próprio ego, em vez de ministrar as pessoas que foram confiadas aos seus cuidados.
[13] Ver Ez 34.4
[14] At 20.28
[15] Richard Baxter, The Reformed Pastor (1656; Epworth, 1939) pp. 121-122
[16] Chua Wee Hian, Learning to Lead (IVP, 1987), p. 35
[17] S1 80.1
[18] S1 23.1-2
[19] Jo 10.3-4
[20] 1 Pe 5.2-3
[21] Jo 10.9
[22] 1 Tm 3.2
[23] Tt 1.9
[24] Jo 21.17
[25] 1 Co 3.2; Hb 5.12
[26] C1 1.28
[27] Ef 4.12
[28] Ez 34.14
[29] Lesslie Newbigin, The Good Shepherd, Meditations on Christian Ministry in Today's World (Faith Press, 1977), p. 14
[30] 2 Sm 5.2
[31] S1 2.9
[32] 1 Ts 5.12
[33] Hb 13.17
[34] Hb 13.7
[35] P. ex. Mt 18.15-20; 1 Co 5.4-5, 13
[36] Jo 10.12-13
[37] Mt 7.15; cf. At 20.29-30
[38] 1 Sm 17.34-35
[39] Jo 10.13
[40] Ez 34.5
[41] Tt 1.9
[42] Jo 10.16
[43] Lc 19.10; cf. 15.3-7
[44] Ez 34.6
[45] Richard Baxter The Reformed Pastor (1656; Epworth, 1939), pp. 121-122.
[46] Lc 15.7
[47] 1 Pe 5.4
[48] Mc 10.42-45
[49] T. W. Manson, The Church's Ministry (Hodder & Stoughton, 1948), p. 27
[50] Mt 23.1-12
[51] 2 Co 10.1; cf. 2 Tm 2.24
[52] Charles W. Colson, Kingdoms in Conflict: An Insider's View of Politics, Power and the Pulpit (Morrow-Zondervan, 1987), p. 272
[53] Ibid., p. 274
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