log

log

sábado, 21 de março de 2015

CAPI­TA­LISMO, SOCI­A­LISMO, ALIENAÇÃO E O CAPETA

Cada discurso de liber­ta­ção traz dentro de si a semente de uma nova servidão; em cada esforço de justiça está encap­su­lada a ameaça — talvez a promessa — de uma nova injustiça jamais sonhada.
Quando pisou o palco da história, na esteira da Reforma e do Renas­ci­mento, o capi­ta­lismo repre­sen­tou a implan­ta­ção no âmbito econômico — e portanto na vida real — dos ideais de liberdade e de igualdade arti­cu­la­dos pelo Ilu­mi­nismo e adotados pela Revolução Francesa.
O capi­ta­lismo salvou o mundo das estru­tu­ras do feu­da­lismo, que dividiam a sociedade em com­par­ti­men­tos estanques dos quais ninguém podia sonhar escapar. No mundo medieval, pré-capitalista, os pobres nasciam pobres e morriam pobres, enquanto os nobres nasciam nobres e viviam ricos. Esse estado de coisas era mantido, por um lado, pela força bruta e pela tradição; por outro lado, dependia da inti­mi­da­ção e do aval fornecido pelo clero e pelas demais estru­tu­ras da igreja medieval.
O sistema estava em vigor há quase mil anos e nada parecia ser capaz de ameaçar a sua supre­ma­cia, até que uma série de novidades mais ou menos inter­li­ga­das (entre elas a invenção da imprensa, a divul­ga­ção dos clássicos gregos e a própria Reforma) acabou injetando na sociedade uma série de noções revo­lu­ci­o­ná­rias. O Humanismo fez com que o homem baixasse os olhos do céu pintado do teto da igreja e olhasse para aquela belíssima criatura no espelho; inspirado por sua vez no que viu no rosto do homem, o Ilu­mi­nismo desenhou os ideais de cidadania, igualdade e direitos inalienáveis.
As revo­lu­ções cons­ti­tu­ci­o­nais e repu­bli­ca­nas repre­sen­ta­ram a aplicação desses ideais nos contextos das nações, mas foi preciso o dinheiro — isto é, a ascensão do capi­ta­lismo — para legitimar o sonho demo­crá­tico de mobi­li­dade social no mundo real. Porque, com o capi­ta­lismo, estava apa­ren­te­mente tudo resolvido; o mundo era final­mente um lugar justo, em que qualquer um podia enri­que­cer e ascender a escala social pelos seus próprios méritos. As hie­rar­quias tra­di­ci­o­nais perdiam a sua validade num mundo conduzido por um mercado cada vez mais exigente e influente, intei­ra­mente pronto a premiar qualquer um que satis­fi­zesse os seus caprichos ou — talvez melhor — fosse capaz de lhe oferecer caprichos novos.
Neste novo mundo o menos sofis­ti­cado dos mer­ca­do­res podia pisar o mais requin­tado dos salões, demons­trando com o tilintar de moedas esse seu direito. O valor de um notável foi trans­fe­rido da pureza do seu sangue para o saldo da sua conta bancária, onde permanece até hoje.
Em muitos sentidos o capi­ta­lismo foi portanto um milagre e uma manifesta vitória, os quais ainda não nos cansamos de celebrar. Serviu para denunciar meca­nis­mos de dominação que eram tidos como evidentes e naturais mas que eram, na realidade, meras fabri­ca­ções ide­o­ló­gi­cas. Como todos os discursos, apresentavam-se como sãos e bem-intencionados, porém serviam para sustentar um estado de coisas muito injusto e arti­fi­cial. A desi­gual­dade requer uma ideologia para manter seu perverso equi­lí­brio, e as noções medievais de honra, tradição, auto­ri­dade religiosa, sangue e hie­rar­quia (entre outras) garantiam que o povo comum con­ti­nu­asse sendo explorado, ao mesmo tempo em que a renda e o poder se mantinham con­cen­tra­dos nas mãos seletas da nobreza e do clero.
Ainda mais do que as revo­lu­ções nacionais, a ascensão do capi­ta­lismo alterou para sempre o tecido dessa realidade, servindo para expurgar e anular dos anais da acei­ta­bi­li­dade condutas e opiniões que eram ante­ri­or­mente tido como norma e decência, como o próprio curso natural das coisas. Ao denunciar e reverter o caráter arti­fi­cial dos scripts que faziam rodar o sistema medieval, o capi­ta­lismo mudou o eixo do mundo, tornando-o para todos os efeitos mais justo e menos arbitrário.
Porém as soluções que são discursos (e, no fundo, o capi­ta­lismo é uma cons­tru­ção arbi­trá­ria e arti­fi­cial como o feu­da­lismo) acabam gerando injus­ti­ças pelo menos tão atrozes quanto as que se pron­ti­fi­cou a corrigir.
Coube a Karl Marx observar que as soluções de um mercado nomi­nal­mente “livre” acabam criando novas e severas formas de dominação e de alienação. O capi­ta­lismo traiu quase que ime­di­a­ta­mente as boas intenções do seu discurso. O poder que atribuiu ao mercado acabou trans­for­mando o desejo numa força dis­ci­pli­na­tó­ria e coerciva ao invés de (como gostaria de ser e como se apresenta) liber­ta­dora e criativa. Por depender delas para se sustentar, o capi­ta­lismo patro­ci­nou desde cedo (e cada vez mais) a alienação, a explo­ra­ção e a exclusão em todas as suas formas. Aprendeu a aplacar o homem com a satis­fa­ção de neces­si­da­des menores, ao mesmo tempo em que mantem o sistema rodando pela intro­du­ção de neces­si­da­des novas e arti­fi­ci­ais; essas, uma vez legi­ti­ma­das pela adoção dos ricos, geram desejo nos menos ricos, que gastarão a vida tentando acom­pa­nhar os que se mostram melhores con­su­mi­do­res do que eles. Enquanto todos correm em perfeita sincronia atrás do que não precisam, passando por cima dos que não tem, a distância entre trabalho e capital é per­pe­tu­ada: a igualdade, a liberdade e a mobi­li­dade social per­ma­ne­cem uma ilusão, e o poder descansa con­cen­trado como na mais imperial das hegemonias.
Em outras palavras, o capi­ta­lismo forjou um novo script, e um capaz de sustentar uma realidade tão impla­cá­vel e arbi­trá­ria quanto a medieval, ao mesmo tempo em que dá a impressão de que tudo está correndo do modo mais justo e natural.
O comunismo foi postulado para corrigir essas dis­tor­ções, levando à sua con­sequên­cia natural os prin­cí­pios de igualdade pregados pelo Ilu­mi­nismo. No mundo ideal projetado por Marx a pro­pri­e­dade privada con­ti­nu­ava a existir, mas os bens de produção — cujo monopólio, explicava ele, acaba per­pe­tu­ando a desi­gual­dade feudal — passavam a pertencer a todos. Neste mundo cada um tra­ba­lha­ria num espaço produtivo e criativo que seria muito lite­ral­mente seu, rea­pro­xi­mando o tra­ba­lha­dor do fruto do seu trabalho e anulando a força degra­da­dora da alienação pessoal e coletiva.
Tratava-se de um projeto belíssimo e com um impecável emba­sa­mento teórico; porém, como se sabe, as ten­ta­ti­vas revo­lu­ci­o­ná­rias de se implantar o comunismo pro­du­zi­ram sucesso (para dizer o mínimo) ques­ti­o­ná­vel. Com ainda mais rapidez e inten­si­dade do que o capi­ta­lismo, o comunismo revo­lu­ci­o­ná­rio traiu suas boas intenções e foi utilizado como fer­ra­menta de dominação e de explo­ra­ção. O poder per­ma­ne­ceu con­cen­trado, a con­ti­nui­dade do estado de coisas passou a depender da pro­pa­ganda mentirosa e da inti­mi­da­ção, e a frus­tra­ção coletiva diante das falhas do sistema acabou pro­du­zindo alienação em grau pelo menos tão devas­ta­dor quanto a que gerava o capitalismo.
O comunismo, nascido na denúncia apai­xo­nada das ide­o­lo­gias, havia se tornado apenas mais uma, gerando seu próprio script ide­o­ló­gico e seu próprio mundo con­di­ci­o­nado e alienante. O primeiro projeto humano que propunha a implan­ta­ção deli­be­rada e gene­ra­li­zada de um mundo justo passou a repre­sen­tar, para muitos, sinônimo de abo­mi­na­ção e de terror.
É uma história que ainda não acabou, mesmo porque que desenvolveram-se nesse intervalo muitas estirpes de soci­a­lismo e de capi­ta­lismo, algumas das quais apren­de­ram a sentar-se na mesma mesa para conversar. Por outro lado, capi­ta­lismo e comunismo ficaram conhe­ci­dos pelo modo pra­ti­ca­mente oposto com que propõem-se a defender os mesmos prin­cí­pios de liberdade e de igualdade. Uma resolução desse conflito (e da resul­tante pola­ri­za­ção) parece pertencer a um horizonte distante.
O que ficou demons­trada, no entanto, é a capa­ci­dade humana de torcer o mais equi­li­brado e bem-intencionado dos discursos de modo a moldá-lo em fer­ra­menta de dominação e explo­ra­ção. O projeto que foi estudado à minúcia para garantir a justiça será fatal­mente usado para perpetuar o seu oposto. Nossa intenção de salvar acaba matando, e o sonho de remendar acaba rasgando. Num livro de 1995, Howard Bloom dá a essa tendência con­tra­di­tó­ria e irre­sis­tí­vel o nome de Princípio Lúcifer:
Um resultado: nossas melhores qua­li­da­des acabam des­per­tando o pior de nós. De nossa ânsia em reunir e con­so­li­dar vem nossa tendência a separar e destruir. De nossa devoção a um bem maior vem nossa propensão às mais vis atro­ci­da­des. De nosso com­pro­misso com ideais elevados vem nossa desculpa para odiar. Desde o princípio da história temos sido cegados pela capa­ci­dade do mal em assumir um disfarce de abnegação. Temos sido incapazes de enxergar que nossas qua­li­da­des mais admi­rá­veis conduzem-nos muitas vezes às ações que mais abo­mi­na­mos: assas­si­nato, tortura, genocídio e guerra.
Não será mero exagero ou retórica associar essa tendência (de usar o que é bom para perpetuar o mal) a Satanás, porque num sentido muito profundo essa tendência é Satanás. René Girard sugere algo parecido quando explica os meca­nis­mos de demo­ni­za­ção e de viti­mi­za­ção que mantem as soci­e­da­des ao mesmo tempo apa­zi­gua­das e injustas. Apegar-se a boas intenções que acabam pro­du­zindo terror e injustiça não é só coisa do diabo; esse processo, apa­ren­te­mente, é o próprio diabo, e não pode ser revertido ou con­tor­nado por qualquer discurso acessível aos homens. O capeta se esconde nos nossos sonhos mais elevados e nas demandas mais puras.
Jesus, o não-condicionado, apa­ren­te­mente não ignorava essas coisas, porque recusou-se con­sis­ten­te­mente a articular um discurso. Não chegamos a conhecer sua “proposta”, o reino de Deus, por algo além de com­pa­ra­ções e parábolas (que não permitem com­pre­en­são mais do que trans­ver­sal), e pela sua própria e irre­pre­en­sí­vel conduta. Grande parte da sua vida foi dedicada a denunciar e condenar os scripts ins­ti­tu­ci­o­nais de dominação, porém ele mesmo não rebaixou-se a sugerir um discurso subs­ti­tuto, porque sabia que qualquer ideologia pode ser (e será) usada como fer­ra­menta ide­o­ló­gica nas mãos de Satanás1.
O que Jesus deixou-nos como herança é o reino de Deus, um local ou condição que não pode ser ade­qua­da­mente descrito ou atingido. O reino está em perpétuo tornar-se, em perpétuo devir, e espreita “dentro de nós” e “entre nós” aguar­dando o momento de ver Satanás des­pen­cando como um relâmpago. O reino de Deus não pode ser fundado nem implan­tado nem arti­cu­lado nem encon­trado; só pode ser buscado, e diz-se que para os que o buscam — e para os tocados pela sua obsessão de dividir — todas as coisas serão acrescentadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário