Ai de vós, escribas e
fariseus, hipócritas! pois que edificais os sepulcros dos profetas e adornais
os monumentos dos justos,
E dizeis: Se existíssemos no tempo de nossos pais, nunca nos associaríamos com eles para derramar o sangue dos profetas.
Assim, vós mesmos testificais que sois filhos dos que mataram os profetas.
Enchei vós, pois, a medida de vossos pais.
Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação do inferno?
¶ Portanto, eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas; a uns deles matareis e crucificareis; e a outros deles açoitareis nas vossas sinagogas e os perseguireis de cidade em cidade;
Mateus 23:29-34
E dizeis: Se existíssemos no tempo de nossos pais, nunca nos associaríamos com eles para derramar o sangue dos profetas.
Assim, vós mesmos testificais que sois filhos dos que mataram os profetas.
Enchei vós, pois, a medida de vossos pais.
Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação do inferno?
¶ Portanto, eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas; a uns deles matareis e crucificareis; e a outros deles açoitareis nas vossas sinagogas e os perseguireis de cidade em cidade;
Mateus 23:29-34
Às vezes me
pergunto se sou ortodoxo ou não. Reflito muito acerca dessa terrível mazela
intelectual de querer entender as pessoas e os pensadores meramente
rotulando-os, como se o mero estampar de um rótulo pudesse explicar a
complexidade do pensamento de uma pessoa que pensa por si mesma. Já fui
rotulado de muitas coisas, fui chamado de liberal, de herege, de neo-ortodoxo,
de ecumênico, de anti-ecumênico, de romanista, de anti-católico, de
conservador, de ritualista, de místico, de fideísta, de racionalista, e de
muitas outras nomenclaturas e xingamentos, muitos deles auto-excludentes. Cada
vez mais me convenço de que a rotulação é uma forma pecaminosa de obscurantismo
e de difamação do semelhante, além de preguiça mental.
Às
vezes me perguntam se sou ortodoxo ou não, todavia, minha resposta, em geral, é
que devemos compreender o termo “ortodoxia” de maneira mais plena do que
normalmente se faz. Em outras palavras, sim, estou disposto a assumir o rótulo
de ortodoxo, e de fato sou ortodoxo, se não limitarmos erradamente o termo à
expressão teológica de um certo período da história do pensamento cristão
apenas. Talvez devêssemos pensar em uma paleo-ortodoxia, isto é, uma ortodoxia
que retoma aos fundamentos neotestámentarios e patrísticos da fé cristã.
Porém
ainda mais importante que isso, seria lembrar que o termo “ortodoxia” não
significa apenas “doutrina correta” (ideia sempre problemática, pois ela tende
a degenerar em arrogância), mas também significa etimologicamente “glória
correta” devida a Deus, como sugere Hans Urs von Balthasar. Assim, nossa
reflexão será ortodoxa na medida em que representar um ato de glorificação de
Deus. Nesse sentido, não só a minha teologia, mas toda a minha vida é uma viva
e constante ortodoxia, com a qual estou apaixonadamente comprometido.
Infelizmente, o que se entende por ortodoxia é algo
bem diverso: é a subscrição doutrinária a códigos de doutrinas escritos no
Século XVII e, consequentemente, escritos a partir de um inevitável condicionamento
sócio-cultural, politico e econômico. Ter os documentos do século XVII em alta
conta é uma coisa; mas considera-los infalíveis é outra muito diferente, e beira
a idolatria. Eles representam um esforço humano muito importante de extrair o
ensino bíblico, mas um esforço histórico e geograficamente localizado, e que,
portanto, não pode ser tido como perene ou impermeável á avaliação crítica.
O pior é que esses documentos foram produzidos em um
período muito conturbado da história do protestantismo, período de guerras
religiosas em que uma cristalização doutrinária parecia a forma mais segura de
se proteger contra os esforços católico-romanos de recuperar terreno em face da
ameaça protestante. Esse período confessionalista é também chamado de “neo-escolástico”,
justamente porque a teologia volta a ser tão racionalista quanto aquela
teologia medieval condenada por Lutero e Calvino, e considerada pela maioria
dos reformadores como útil, porém, em linhas gerais, inadequada.
No século XVII, influenciados pelo novo racionalismo
de cunho cartesiano, as denominações protestantes retomam esse esforço de produzir
uma teologia de cunho dedutivo, onde a fidelidade às Escrituras é substituída pelo
poder da lógica, da especulação de dedutiva e da metafisica grega (retomando
ideias platônicas e aristotélicas). Até hoje os professores de teologia
sistemática que possuem inclinações fundamentalistas continuam utilizando, nas
escolas de teologia, tratados sistemáticos produzidos a partir desse ideal
racionalista.
Talvez o elemento mais pernicioso dentre todos os
componentes da mente fundamentalista seja justamente o dogmatismo, que é uma
forma de idolatria. O dogmatismo é a Absolutização dos dogmas, o
estabelecimento do sistema de doutrinas não apenas como inquestionável e,
portanto, inerrante, mas acima da Palavra de Deus.
O fundamentalista costuma apregoar e insistir que
possui uma visão elevada das Escrituras, e que quer, antes de tudo, preservar a
verdade bíblica. A mera insistência nisso já deveria levantar suspeitas. Será
que a Bíblia carece de ser blindada? Será que o estudo critico da Bíblia teria
como consequência o risco de evidenciarmos sua natureza humana e cultural,
tirando da mesma qualquer dignidade estabelecida pelo ato de fé? Será que a
Bíblia se mostra mais crível quando é “teflonizada” dessa forma pelos fundamentalistas,
ou quando resiste aos ataques feitos por toda sorte de metodologia cientifica?
Esta suposta “visão elevada das Escrituras”
apregoada pelos fundamentalistas é uma balela. Ela é representada pelo uso dos
adjetivos “infalível” e “inerrante”, ou pela identificação pura e simples da
Bíblia com a noção de Palavra de Deus, sem que esta identificação seja jamais problematizada,
sem que jamais se faça a nota atenuante de que, como dizia Calvino, a Bíblia
deva ser entendida como Palavra escrita, para que não seja confundida com o próprio Cristo, o Verbo divino, a
Palavra encarnada, e para que ninguém se esqueça de que a mera apresentação
linguística e textual já torna a Bíblia um constrangimento da Palavra divina e
que, como consequência óbvia disso, não pode representar a Palavra de Deus em
sua completude, ou melhor, sua infinitude.
A heresia fundamentalista acaba por defender uma
visão docética da Bíblia, isto é, uma visão em que a Bíblia é plenamente divina,
e só é humana aparentemente. O elemento humano é, para todos os fins práticos,
eliminado ou anulado. Etsa visão não é a posição ortodoxa das Escrituras, que
defende que a Bíblia é tanto divina quanto humana, tendo sido,
independentemente da inspiração, um produto da cultura hebraica, e de pessoas
que escreveram sem terem sua personalidade e, enfim, sua humanidade nulificadas
no processo.
O resultado prático do dogmatismo é que a Bíblia já
não pode falar por si mesma, mas somente através do filtro imposto pelos
fundamentalistas, a saber, o filtro do sistema de dogmas que se interpõe entre
a Bíblia e o leitor. Por causa do filtro, o leitor influenciado pelo
fundamentalismo não consegue extrair nada das Escrituras que o sistema
doutrinário não permita ou sancione. A Bíblia passa a ser uma serva do dogma.
Foi justamente contra esse estado de coisas que os
reformadores do Século XVI protestaram, isto é, contra uma tradição doutrinária
assumida pela igreja medieval que se posicionava acima da própria Bíblia no que
se refere à autoridade em questões de fé e de prática. Hoje, todo
fundamentalista dirá que tem a Bíblia como única regra de fé e prática, mas não
admite, ou não quer perceber, que está falando de uma Bíblia inteiramente domesticada,
isto é, uma Bíblia filtrada pelo dogma, e que já não fala por si mesma.
Minha opinião é que toda teologia bíblica e saudável
implica em dois fatores: ela deve estar sempre e repetidamente sob o escrutínio
da pesquisa bíblica (que, por sinal, nunca termina, pois a ciência exegética e
os estudos históricos sempre nos trazem mais e novas luzes à leitura do texto),
em primeiro lugar. Toda boa teologia é, portanto eminentemente bíblica. Isto significa
colocar o sistema doutrinário sempre, e novamente, sob o crivo das Escrituras. O
fundamentalismo, ao contrário, usa a Bíblia apenas como subsidio para provar a
validade dos dogmas. Os versículos viram dicta probanda, isto é, textos-prova,
que servem apenas e simplesmente para comprovar o que a doutrina ensina. Isto representa
uma inversão, ou pior, uma verdadeira perversão.
Em segundo lugar, toda teologia viva e saudável deve
estar sempre e repetidamente sob o escrutínio das necessidades estabelecidas
pela missão da igreja, que é a proclamação do evangelho da paz por ato e por
palavra, isto é, pela missão integral da igreja de Cristo no tempo em que ela
está inserida. A missão da igreja é sua razão de ser, isto é, ela existe para
cumprir sua missão que é proclamar o evangelho, por palavra e ato. Logo, a
teologia deve servir à igreja no cumprimento de sua missão. Toda boa teologia,
portanto, é eminentemente missiológica.
Portanto, o “carro” da teologia deveria se mover, em
minha opinião, sobre dois eixos: o eixo da pesquisa bíblica e o eixo da
pesquisa missiológica. São essas rodas que fazem a teologia andar, e a tornam
relevante para a igreja. Os fundamentalistas instrumentalizam a Bíblia e
rejeitam a missiologia e, consequentemente, paralisam a teologia. Ela se torna
uma mera compilação sistemática sem nenhuma eficácia para a igreja.
Cristo disse que o homem não foi feito para o Sábado,
mas sim o Sábado para o homem. Eu sugiro que poderíamos parafrasear a expressão
de Jesus, dizendo que o homem não foi feito para a teologia, mas sim a teologia
para o homem. Em outras palavras, o papel da igreja não é proteger a sã
doutrina, mas fazer uso da mesma para um melhor cumprimento de sua missão e
para uma compreensão mais exata do ensino das Escrituras. Quando a teologia já
não proporciona estes dois benefícios (como é o caso, no fundamentalismo
teológico), essa teologia só presta para ser lançada fora e pisada pelos
homens.
Não é a toa que os teólogos fundamentalistas
possuem, em geral, têm um pé atrás em relação a missiologia. Os fundamentalistas
apoiam os esforços missionários (que, em geral, reduzem a mera evangelização,
no sentido estrito da “salvação das almas”, e nunca no sentido do evangelho
pleno ou da missão integral), mas opõem-se a reflexão missiológica. Certa vez
um professor de teologia fundamentalista afirmou: “a missiologia é a porta pela
qual as heresias entram na igreja”.
A frase demonstra o pavor que o teólogo em questão
sentia de que a reflexão missiológica levasse ao questionamento do sistema
doutrinário, sistema este que havia se tornado uma base racionalizada da fé,
uma experiência estética agradável e, em última análise, um ídolo, pois o
dogmatismo nada mais é que pura e simples idolatria, isto é, colocar um esforço
humano no lugar da Palavra de Deus. Esta profanação é má, pois se coloca algo
no, lugar em que nada deve estar, o Santo dos Santos, o que é abominável
desolação. O dogmatismo é obra do Anticristo.
(Extraído do Livro Piedade Pervertida)
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