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quarta-feira, 8 de abril de 2015

O Dogmatismo

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que edificais os sepulcros dos profetas e adornais os monumentos dos justos,
E dizeis: Se existíssemos no tempo de nossos pais, nunca nos associaríamos com eles para derramar o sangue dos profetas.
Assim, vós mesmos testificais que sois filhos dos que mataram os profetas.
Enchei vós, pois, a medida de vossos pais.
Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação do inferno?
¶ Portanto, eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas; a uns deles matareis e crucificareis; e a outros deles açoitareis nas vossas sinagogas e os perseguireis de cidade em cidade;

Mateus 23:29-34

Às vezes me pergunto se sou ortodoxo ou não. Reflito muito acerca dessa terrível mazela intelectual de querer entender as pessoas e os pensadores meramente rotulando-os, como se o mero estampar de um rótulo pudesse explicar a complexidade do pensamento de uma pessoa que pensa por si mesma. Já fui rotulado de muitas coisas, fui chamado de liberal, de herege, de neo-ortodoxo, de ecumênico, de anti-ecumênico, de romanista, de anti-católico, de conservador, de ritualista, de místico, de fideísta, de racionalista, e de muitas outras nomenclaturas e xingamentos, muitos deles auto-excludentes. Cada vez mais me convenço de que a rotulação é uma forma pecaminosa de obscurantismo e de difamação do semelhante, além de preguiça mental.
Às vezes me perguntam se sou ortodoxo ou não, todavia, minha resposta, em geral, é que devemos compreender o termo “ortodoxia” de maneira mais plena do que normalmente se faz. Em outras palavras, sim, estou disposto a assumir o rótulo de ortodoxo, e de fato sou ortodoxo, se não limitarmos erradamente o termo à expressão teológica de um certo período da história do pensamento cristão apenas. Talvez devêssemos pensar em uma paleo-ortodoxia, isto é, uma ortodoxia que retoma aos fundamentos neotestámentarios e patrísticos da fé cristã.
Porém ainda mais importante que isso, seria lembrar que o termo “ortodoxia” não significa apenas “doutrina correta” (ideia sempre problemática, pois ela tende a degenerar em arrogância), mas também significa etimologicamente “glória correta” devida a Deus, como sugere Hans Urs von Balthasar. Assim, nossa reflexão será ortodoxa na medida em que representar um ato de glorificação de Deus. Nesse sentido, não só a minha teologia, mas toda a minha vida é uma viva e constante ortodoxia, com a qual estou apaixonadamente comprometido. 
Infelizmente, o que se entende por ortodoxia é algo bem diverso: é a subscrição doutrinária a códigos de doutrinas escritos no Século XVII e, consequentemente, escritos a partir de um inevitável condicionamento sócio-cultural, politico e econômico. Ter os documentos do século XVII em alta conta é uma coisa; mas considera-los infalíveis é outra muito diferente, e beira a idolatria. Eles representam um esforço humano muito importante de extrair o ensino bíblico, mas um esforço histórico e geograficamente localizado, e que, portanto, não pode ser tido como perene ou impermeável á avaliação crítica.


O pior é que esses documentos foram produzidos em um período muito conturbado da história do protestantismo, período de guerras religiosas em que uma cristalização doutrinária parecia a forma mais segura de se proteger contra os esforços católico-romanos de recuperar terreno em face da ameaça protestante. Esse período confessionalista é também chamado de “neo-escolástico”, justamente porque a teologia volta a ser tão racionalista quanto aquela teologia medieval condenada por Lutero e Calvino, e considerada pela maioria dos reformadores como útil, porém, em linhas gerais, inadequada.


No século XVII, influenciados pelo novo racionalismo de cunho cartesiano, as denominações protestantes retomam esse esforço de produzir uma teologia de cunho dedutivo, onde a fidelidade às Escrituras é substituída pelo poder da lógica, da especulação de dedutiva e da metafisica grega (retomando ideias platônicas e aristotélicas). Até hoje os professores de teologia sistemática que possuem inclinações fundamentalistas continuam utilizando, nas escolas de teologia, tratados sistemáticos produzidos a partir desse ideal racionalista.


Talvez o elemento mais pernicioso dentre todos os componentes da mente fundamentalista seja justamente o dogmatismo, que é uma forma de idolatria. O dogmatismo é a Absolutização dos dogmas, o estabelecimento do sistema de doutrinas não apenas como inquestionável e, portanto, inerrante, mas acima da Palavra de Deus.


O fundamentalista costuma apregoar e insistir que possui uma visão elevada das Escrituras, e que quer, antes de tudo, preservar a verdade bíblica. A mera insistência nisso já deveria levantar suspeitas. Será que a Bíblia carece de ser blindada? Será que o estudo critico da Bíblia teria como consequência o risco de evidenciarmos sua natureza humana e cultural, tirando da mesma qualquer dignidade estabelecida pelo ato de fé? Será que a Bíblia se mostra mais crível quando é “teflonizada” dessa forma pelos fundamentalistas, ou quando resiste aos ataques feitos por toda sorte de metodologia cientifica?


Esta suposta “visão elevada das Escrituras” apregoada pelos fundamentalistas é uma balela. Ela é representada pelo uso dos adjetivos “infalível” e “inerrante”, ou pela identificação pura e simples da Bíblia com a noção de Palavra de Deus, sem que esta identificação seja jamais problematizada, sem que jamais se faça a nota atenuante de que, como dizia Calvino, a Bíblia deva ser entendida como Palavra escrita, para que não seja confundida com o próprio Cristo, o Verbo divino, a Palavra encarnada, e para que ninguém se esqueça de que a mera apresentação linguística e textual já torna a Bíblia um constrangimento da Palavra divina e que, como consequência óbvia disso, não pode representar a Palavra de Deus em sua completude, ou melhor, sua infinitude.


A heresia fundamentalista acaba por defender uma visão docética da Bíblia, isto é, uma visão em que a Bíblia é plenamente divina, e só é humana aparentemente. O elemento humano é, para todos os fins práticos, eliminado ou anulado. Etsa visão não é a posição ortodoxa das Escrituras, que defende que a Bíblia é tanto divina quanto humana, tendo sido, independentemente da inspiração, um produto da cultura hebraica, e de pessoas que escreveram sem terem sua personalidade e, enfim, sua humanidade nulificadas no processo.


O resultado prático do dogmatismo é que a Bíblia já não pode falar por si mesma, mas somente através do filtro imposto pelos fundamentalistas, a saber, o filtro do sistema de dogmas que se interpõe entre a Bíblia e o leitor. Por causa do filtro, o leitor influenciado pelo fundamentalismo não consegue extrair nada das Escrituras que o sistema doutrinário não permita ou sancione. A Bíblia passa a ser uma serva do dogma.


Foi justamente contra esse estado de coisas que os reformadores do Século XVI protestaram, isto é, contra uma tradição doutrinária assumida pela igreja medieval que se posicionava acima da própria Bíblia no que se refere à autoridade em questões de fé e de prática. Hoje, todo fundamentalista dirá que tem a Bíblia como única regra de fé e prática, mas não admite, ou não quer perceber, que está falando de uma Bíblia inteiramente domesticada, isto é, uma Bíblia filtrada pelo dogma, e que já não fala por si mesma.


Minha opinião é que toda teologia bíblica e saudável implica em dois fatores: ela deve estar sempre e repetidamente sob o escrutínio da pesquisa bíblica (que, por sinal, nunca termina, pois a ciência exegética e os estudos históricos sempre nos trazem mais e novas luzes à leitura do texto), em primeiro lugar. Toda boa teologia é, portanto eminentemente bíblica. Isto significa colocar o sistema doutrinário sempre, e novamente, sob o crivo das Escrituras. O fundamentalismo, ao contrário, usa a Bíblia apenas como subsidio para provar a validade dos dogmas. Os versículos viram dicta probanda, isto é, textos-prova, que servem apenas e simplesmente para comprovar o que a doutrina ensina. Isto representa uma inversão, ou pior, uma verdadeira perversão.


Em segundo lugar, toda teologia viva e saudável deve estar sempre e repetidamente sob o escrutínio das necessidades estabelecidas pela missão da igreja, que é a proclamação do evangelho da paz por ato e por palavra, isto é, pela missão integral da igreja de Cristo no tempo em que ela está inserida. A missão da igreja é sua razão de ser, isto é, ela existe para cumprir sua missão que é proclamar o evangelho, por palavra e ato. Logo, a teologia deve servir à igreja no cumprimento de sua missão. Toda boa teologia, portanto, é eminentemente missiológica.

Portanto, o “carro” da teologia deveria se mover, em minha opinião, sobre dois eixos: o eixo da pesquisa bíblica e o eixo da pesquisa missiológica. São essas rodas que fazem a teologia andar, e a tornam relevante para a igreja. Os fundamentalistas instrumentalizam a Bíblia e rejeitam a missiologia e, consequentemente, paralisam a teologia. Ela se torna uma mera compilação sistemática sem nenhuma eficácia para a igreja.


Cristo disse que o homem não foi feito para o Sábado, mas sim o Sábado para o homem. Eu sugiro que poderíamos parafrasear a expressão de Jesus, dizendo que o homem não foi feito para a teologia, mas sim a teologia para o homem. Em outras palavras, o papel da igreja não é proteger a sã doutrina, mas fazer uso da mesma para um melhor cumprimento de sua missão e para uma compreensão mais exata do ensino das Escrituras. Quando a teologia já não proporciona estes dois benefícios (como é o caso, no fundamentalismo teológico), essa teologia só presta para ser lançada fora e pisada pelos homens.


Não é a toa que os teólogos fundamentalistas possuem, em geral, têm um pé atrás em relação a missiologia. Os fundamentalistas apoiam os esforços missionários (que, em geral, reduzem a mera evangelização, no sentido estrito da “salvação das almas”, e nunca no sentido do evangelho pleno ou da missão integral), mas opõem-se a reflexão missiológica. Certa vez um professor de teologia fundamentalista afirmou: “a missiologia é a porta pela qual as heresias entram na igreja”.
A frase demonstra o pavor que o teólogo em questão sentia de que a reflexão missiológica levasse ao questionamento do sistema doutrinário, sistema este que havia se tornado uma base racionalizada da fé, uma experiência estética agradável e, em última análise, um ídolo, pois o dogmatismo nada mais é que pura e simples idolatria, isto é, colocar um esforço humano no lugar da Palavra de Deus. Esta profanação é má, pois se coloca algo no, lugar em que nada deve estar, o Santo dos Santos, o que é abominável desolação. O dogmatismo é obra do Anticristo.

  
 (Extraído do Livro Piedade Pervertida)




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